O grito das águas

Eles somam mais de 50 mil em todo o país e formam o Movimento dos Atingidos por Barragens. Energia elétrica, sim, mas com respeito aos direitos dos moradores da região afetada

Por Lígia Ximenes
EmCrise – 12/10/2002*

"Ca-ra-ra-ô! Em outros tempos, era esse o grito de guerra que os povos indígenas do norte do Pará proferiam a altos brados na disputa por seus territórios. Ironia do destino, cararaô também foi o primeiro nome de batismo de um projeto de usina hidrelétrica no chamado Médio Xingu.

A escolha partiu dos militares de plantão, em 1975, mas o projeto de construção vem sendo tocado pelos sucessivos governos até hoje. Para os Kuruwai, Suruí, Carajá, Apinajé, Gavião, Kraô e Krikati, a construção da usina representa uma grande ameaça.

Foto: Paulo Lima

As preocupações do governo, porém, continuam sendo outras: o desenvolvimento da economia da região e o aumento da produção de energia elétrica nacional. Ainda mais agora, depois da experiência com o apagão.

A usina no rio Xingu promete produzir muito mais que a de Itaipu, a maior do Brasil, na fronteira com o Paraguai. O problema é que, para construir a hidrelétrica, a água inundará 1.400 quilômetros quadrados, área equivalente a 40 mil campos de futebol. Isso resultará na destruição das economias locais e obrigará os moradores a deixarem a terra que habitam.

A notícia da construção da hidrelétrica gerou protestos da população local e de entidades de defesa do meio ambiente. A Eletronorte, subsidiária do governo responsável pelo projeto, não teve outra saída senão revisar muitos dos pontos polêmicos. No entanto, o projeto continua mais vivo do que nunca. Ganhou, inclusive, outro nome: Belo Monte.

"Desde os anos 70, há pelo menos 1 milhão de desabrigados devido à construção de barragens", estima Hélio Mecca, um dos diretores nacionais do Movimento dos Atingidos por Barragens, o MAB. Criado no final de 70, esse movimento busca organizar as populações ameaçadas ou atingidas pelas atuais 594 barragens espalhadas Brasil afora (até 2015, outras 494 serão instaladas, de acordo com o Ministério das Minas e Energia). Reúne cerca de 50 mil pequenos agricultores, sem-terra, indígenas, remanescentes de antigos quilombos e pescadores.

Mecca, ele próprio, faz parte dessa massa de excluídos. Aos 10 anos, vivendo no município gaúcho de Mariano Mouro, o menino já sabia pelas conversas dos adultos que um dia deveria abandonar o mundo que até então conhecera, a casa, o quintal e as brincadeiras. Sua cidade iria desaparecer com a construção da hidrelétrica de Itá. "Com palavras não se explica como é terrível esse processo para as famílias que, na maior parte das vezes, nem sabem para onde vão", lembra.

Na avaliação do militante, tanto o governo como as empresas privadas esquecem dos habitantes das áreas desocupadas. "Até porque não há lei que obrigue uma empresa, nacional ou estrangeira, a dar abrigo às comunidades desalojadas." Assim, são três as alternativas que se apresentam aos atingidos: "Ou aceitar a indenização paga, ou reclamar na Justiça ou morrer afogado", sentencia Mecca.

Pelas contas do movimento, mais de 70% dos desabrigados simplesmente abandonam suas terras. Quanto às indenizações, há histórias que beiram o ridículo e a humilhação. É o caso das famílias que viviam na área onde atualmente funciona a hidrelétrica de Cana Brava, em Goiás, inaugurada no final de maio. "Teve gente que recebeu 36 reais por tudo o que construiu na vida. Outras famílias, que antes viviam em uma área de mil hectares, hoje dormem sob uma lona", conta Mecca.

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) se defende das acusações. Criada em 1996 para regular e fiscalizar o setor, a entidade informa que há leis, como o Estatuto da Terra, contemplando as famílias desabrigadas por causa da construção de barragens. "A lei até pode determinar os critérios para declarar uma área de utilidade pública, mas não contempla a questão social", contesta Pedro Eloir, outro dos diretores do MAB. Outra das críticas da entidade é a falta de diálogo no processo de construção de uma barragem. Segundo Eloir, o governo hoje contrata uma empresa para fazer o estudo de impacto ambiental sem ao menos comunicar a população sobre o fato. "Só depois de o documento pronto e a licença vendida é que ficamos sabendo o nome da empresa responsável."

A privatização do setor elétrico, de fato, é mais um problema com os quais se deparam os atingidos por barragens nos dias de hoje. "O governo costuma tratar melhor os atingidos, pois precisa manter sua reputação para angariar votos. Por outro lado, a iniciativa privada recebe a concessão sem se comprometer com nada, a não ser com o andamento do projeto", afirma. A construção da barragem de Belo Monte só começará quando o governo obtiver licença ambiental. Sabe-se que o documento já se encontra em poder da Eletronorte, mas foi contestado pelo Ministério Público Federal no Supremo Tribunal Federal. As denúncias são de que a licença não passou pelo crivo do Congresso e foi contratada sem que se fizesse licitação. Além disso, pesa o fato de se restringir apenas ao Pará, quando, na verdade, envolve a exploração de um rio que corre por outros Estados, como o Maranhão e o Tocantins.

Com o estudo parado, interromperam-se também as pressões feitas pela Eletronorte à população local. "Algumas lideranças indígenas da região chegaram a participar de palestras promovidas pela Eletronorte", conta o cacique Joaquim Kuruwai, ameaçado de morte por denunciar invasores em seu território. Ele soube oficialmente que sua aldeia não será atingida. "O que nos preocupa é a seqüência de barragens", diz, referindo-se à possibilidade de que, abertos os caminhos, o projeto possa ser ampliado. No entanto, o atraso na conclusão do estudo não deve adiar por mais tempo a construção da usina. Nem impedirá que o projeto seja oferecido a investidores privados. O que deve afastar potenciais empresários, segundo especialistas no assunto, é justamente o fato da área ser ocupada por povos indígenas. Por isso, é provável que o governo assuma Belo Monte para, depois, repassá-la ao setor privado. Nas mãos do governo ou da iniciativa privada, o fato é que o grito de guerra dos povos indígenas ultrapassou o norte do Pará.

Cararaô também virou palavra de ordem do Movimento dos Atingidos por Barragens, hoje considerado um dos principais atores nas lutas do campo.

800 mil

É esse o número de barragens construídas no mundo desde 1950, causando a expulsão de 40 milhões a 80 milhões de pessoas. Os dados são da Comissão Mundial de Barragens, criada em maio de 1998 e que reúne representantes de governos, setores privados, instituições financeiras internacionais e organizações sociais. O drama vivido pelas famílias brasileiras, de fato, se repete em muitos outros países pobres. Um caso exemplar vem do sudeste africano.

A barragem de Kariba, construída na década de 50, entre Zâmbia e Zimbabue, provocou a morte de 100 operários e a expulsão de 57 mil pessoas. Os principais beneficiados são empresas da Inglaterra e dos Estados Unidos que exploram cobre em ambos os territórios.

Os donos dos rios A venda do setor elétrico brasileiro a investidores privados é uma estratégia colocada em prática por nossos governantes há pelo menos oito anos. O problema é que a ação, além de encarecer o custo da energia agora transformada em mercadoria, põe à venda também nossos rios. O negócio tem atraído multinacionais, como as americanas Duke Energy e AES, a belga Tractebel e a portuguesa EDP. Os rios que ainda correm livres devem ser privatizados até 2015, estima o Movimento dos Atingidos por Barragens.

*Publicado originalmente na revista Sem Fronteiras (agosto/2002).