Arquitetura da destruição
Noam Chomsky,
um dos convidados de honra do Fórum Social Mundial, fala sobre
guerra, paz e dissidência
Por Marcelo
Soares
EmCrise 01/06/2002
O lingüista Noam Chomsky
é um dos principais críticos da política externa
norte-americana. Convidado para dar um testemunho sobre guerra e paz no
Fórum Social Mundial, ele falou no dia 1º de fevereiro sobre
os efeitos da guerra e da paz na política mundial. Esta entrevista
foi concedida por e-mail, em duas partes: primeiro, antes do Fórum,
Chomsky respondeu a perguntas sobre guerra e paz. Nas primeiras semanas
de fevereiro, fez uma avaliação do evento e comentou sobre
um julgamento político que sofreu na Turquia.
Aos 72 anos, Chomsky continua produzindo conhecimento e crítica
em seu gabinete do MIT (Massachussetts Institute of Technology), onde
pesquisa e dá aulas. Em 1957, ele tornou-se conhecido como o intelectual
que propôs a idéia, mais tarde corroborada em pesquisas biológicas,
de que o ser humano já nasce com estruturas mentais que o tornam
apto para desenvolver a linguagem. Esses estudos, que revolucionaram a
compreensão sobre o relacionamento entre a linguagem e a mente,
o levaram a ser comparado a gigantes como Freud e Einstein.
A popularização de algumas idéias de Chomsky - desta
vez no campo da política - só começou um pouco mais
tarde. Mais precisamente a partir da segunda metade dos anos 70, quando
começou a escrever críticas a respeito da forma como os
EUA conduzem sua política exterior.
O fato de ser dissidente, aliado ao brilhantismo de seu trabalho como
lingüista e à popularidade de seus escritos políticos,
atraiu críticas da intelligentsia norte americana e transformou
seu nome num tabu para a grande imprensa, alvo freqüente de suas
críticas. Seria impossível, por exemplo, ler um artigo seu
na prestigiada "Op-ed Page" do The New York Times; é
mais fácil encontrar suas idéias na Z
Magazine, com a qual ele colabora sistematicamente.
Nesta entrevista, Chomsky fala sobre o Fórum Social Mundial, guerra
e paz e o julgamento na Turquia. Ele critica, em especial, a forma como
o governo dos Estados Unidos tem tratado a liberdade de informação
nestes tempos de guerra. Cita, para ilustrar o assunto, uma frase do cientista
político Samuel Huntington: "o poder permanece forte quando
permanece no escuro; exposto à luz do sol, ele começa a
evaporar".
EmCrise: É a primeira vez em que o sr. vem para o Fórum
Social Mundial. Quais são suas impressões sobre a primeira
edição do evento, ocorrida em 2001?
Noam Chomsky: Foi impressionante e muito importante. Creio que não
seja exagero descrever o Fórum como um dos mais encorajadores desenvolvimentos
da cena mundial em muitos anos -até como um dos primeiros sinais
da realização da tradicional aspiração da
esquerda, desde suas origens modernas, por uma verdadeira "internacional",
uma forma de globalização que envolva a grande maioria da
população do mundo, e reflita seus interesses e preocupações.
Após o Fórum, que avaliação o sr. faz dele?
Fiquei bastante impressionado pelo que pude ver do FSM, em particular
os grupos que tive chance de encontrar e o espírito geral do evento.
Geralmente me empolgo pouco com esses eventos, mas este pareceu bastante
promissor para mim.
Defensores da adoção do esperanto como língua internacional
de resistência ao avanço do inglês afirmam que não
haverá solidariedade internacional entre as lutas sociais enquanto
não houver unidade de língua dessas lutas. Como lingüista
e crítico de política internacional, o que o sr. pensa sobre
o assunto?
Francamente, não levo essas afirmações deles muito
a sério. Talvez o esperanto seja algo bom, talvez não. Mas
não tenho nenhuma expectativa de que ele possa ter outras conseqüências.
Incidentalmente, para a grande maioria das pessoas do mundo, o esperanto
é tão acessível quanto o tibetano é para mim.
Alguns convidados especiais, como Michael Hardt (professor de Harvard,
autor de "Império), mostraram desconforto com a intensa participação
tanto do governo estadual quanto da Prefeitura de Porto Alegre no Fórum,
visto que representantes de países foram vetados. O que o sr. pensa
sobre a proximidade?
Não tenho nenhum sentimento particular a respeito da participação
do governo do Estado. Pareceu bastante natural. Duvido de que eles teriam
feito objeções a uma delegação do Estado de
Massachussetts. E a conexão entre o PT e o FSM parece próxima
o suficiente para garantir a continuidade. Mas não pensei muito
no assunto.
Que impacto devem ter os eventos de 11 de setembro e a subsequente
reação "linha-dura" do governo dos EUA para o
desenvolvimento de vozes dissonantes em relação à
forma como a globalização tem se desenvolvido?
Há, naturalmente, uma tentativa de explorar o medo e a angústia
da população para forçar a aprovação
de programas regressivos, desde o corte de impostos corporativos até
o aumento radical no orçamento militar (que não tem nada
a ver com o terrorismo) e medidas que aumentam o poder do Estado para
silenciar a crítica e impor a disciplina. Isso já foi previsto,
e deve apenas ser esperado. A maior parte dos intelectuais e publicações
de opinião intelectual estão em seu papel tradicional: se
alinhando no apoio à violência de Estado, e produzindo denúncias
histéricas daqueles que não se juntam ao coro da adoração
ao Estado. Tem tido muito pouco efeito. A opinião popular é
muito mais aberta e diversa do que dizem as manchetes e as publicações,
que têm sua própria agenda. De fato, a preocupação
pública, a abertura ao debate crítico e muitas vezes à
oposição está muito além de qualquer coisa
que eu lembre em estágios comparáveis de conflito internacional.
A guerra contra o terrorismo legitimou de certa forma o contestado
processo eleitoral que colocou Bush na Casa Branca?
A eleição foi contestada principalmente entre as elites
intelectuais. A população não se preocupava muito,
de um jeito ou de outro. A razão é bastante clara: a maior
parte das pessoas tem muito pouca fé no processo democrático,
para começar. Escrevi muitos artigos sobre isso na Z Magazine na
época. Quaisquer dúvidas que ainda houvessem sobre a eleição
foram dissipadas pelos ataques terroristas e pela reação
a eles. Quando o país está sob ameaça, ou está
demolindo um inimigo sem defesa, a população tipicamente
se amontoa sob o guarda-chuva do poder. Isso uma verdade bastante geral,
não só nos EUA.
Como o sr. avalia a guerra americana contra a entidade nebulosa do
"terrorismo"? É possível que uma guerra assim
tenha um fim?
O que quer que esteja ocorrendo, não pode ser seriamente descrito
como uma guerra contra o terrorismo, a menos que sigamos a convenção
normal de definir "terrorismo" como o terrorismo que "eles"
promovem contra "nós", mas não o (freqüentemente
muito maior) terrorismo que "nós" promovemos contra "eles".
Isso devia ser óbvio no caso atual, e normalmente é, na
América Latina e ao redor do Terceiro Mundo, ou mesmo na periferia
da Europa -Irlanda ou Grécia, por exemplo-, onde a população
é familiarizada com o tradicional terrorismo da Europa (e, claro,
suas ramificações). Além disso, devemos lembrar que
a guerra contra o terrorismo foi declarada há 20 anos, quando Reagan
tomou posse, anunciando que a guerra contra o terrorismo internacional
seria o elemento central da política externa norte-americana. A
retórica, então, era a mesma de hoje, e muitas das mesmas
pessoas estavam envolvidas em papéis principais. Sabemos, claro,
como essa guerra contra o terrorismo foi conduzida: criando uma rede terrorista
internacional de escala sem precedentes, e a usando para perpetrar violência
extrema, notavelmente na América Central, mas não só
lá. O terrorismo era tão extremo que até levou a
uma condenação dos EUA pela Corte Mundial e pelo Conselho
de Segurança da ONU (em uma resolução que os EUA
vetaram), e a uma ordem da Corte para acabar com o crime de terrorismo
internacional, a que os EUA responderam pelo aumento instantâneo
no volume das atrocidades terroristas -oficialmente, não havia
nada de secreto nisso. Mas se usarmos o termo "terrorismo" com
o sentido das definições oficiais no Código Americano
e nos manuais militares, então há uma maneira fácil
de reduzi-lo: parar de promovê-lo e de apoiá-lo. Se usarmos
o termo no sentido convencional -no sentido em que os generais brasileiros
diziam defender a população contra o terrorismo, por exemplo-,
então há um problema residual, o terrorismo "deles"
contra "nós", dos fracos contra os fortes, e de forma
alguma esse é um problema trivial. No futuro, pode se tornar ainda
mais sério. Todos sabemos como lidar com ele: os perpetradores
devem ser encontrados e trazidos à Justiça, numa corte internacional
se for terrorismo internacional. E deve haver um esforço sério
para prestar atenção às raízes do crime, que,
de forma bastante típica, envolvem queixas que têm legitimidade
e que devem ser tratadas de forma bastante diferente dos atos terroristas.
É assim que os ingleses reagiram aos bombardeios do IRA, por exemplo
-não bombardeando Boston, que é a fonte da maior parte do
financiamento do grupo, ou destruindo Belfast Ocidental. O mesmo é
verdadeiro para crimes terroristas que vão muito além até
de 11 de setembro, os crimes pelos quais os EUA foram condenados pela
Corte Mundial, por exemplo. Claro, a tentativa da Nicarágua de
seguir meios legais falhou em um mundo governado pela força e não
pela lei. Mas os EUA não encontrariam tais impedimentos. Não
há absolutamente nada radical sobre essas sugestões: ao
contrário, elas são conservadoras. Você pode lê-las,
por exemplo, na última edição da maior publicação
do establishment, a "Foreign Affairs", em um artigo do mais
respeitado historiador militar anglo-americano, Michael Howard, que é
um forte partidário do imperialismo britânico e admira grandemente
seu sucessor americano.
Contra quem é a guerra no Afeganistão? Contra Osama
Bin Laden e o Talibã, contra o islamismo ou a favor de interesses
comerciais?
Quase tudo o que ocorre naquela região envolve interesses em
energia de alguma forma, e esta guerra não é uma exceção.
Mas essa não foi a causa do ataque dos EUA e do Reino Unido; os
interesses estavam lá antes. Nem é uma guerra contra o Islã:
Osama Bin Laden reza desesperadamente por isso, mas os governos Bush e
Blair vão fazer tudo o que puderem para evitar. Nem é uma
"guerra contra o terrorismo", pelas razões que mencionei
antes. É uma demonstração violenta aos fracos de
que não devem ousar fazer a "nós" nem uma fração
do que temos feito a vocês por centenas de anos. Assim, podemos
considerar a guerra como bastante análoga a outras ações
retaliatórias de poderes imperiais, como o sangrento ataque britânico
contra os indianos em resposta a sua rebelião em 1857, ou a devastadora
campanha acelerada de pacificação no sul do Vietnã
depois da Ofensiva do Tet, ou o hediondo terror francês na Argélia,
e inúmeros outros casos: a América Latina teve sua cota
deles desde os conquistadores. A diferença primária, desta
vez, é que havia um ato terrorista dentro dos próprios Estados
poderosos, não só em seus domínios coloniais. Isso
é bastante novo na História.
Como tem sido a reação à guerra nos EUA? Os movimentos
antiguerra ainda são tão fortes quanto eram no começo
da guerra ou eles perderam peso?
Conforme mencionei, os movimentos antiguerra são muito mais
fortes do que foram em qualquer estágio comparável de qualquer
outro conflito internacional. Sobre isso, não pode haver dúvida.
É evidente em qualquer medida: teach-ins (aulas públicas),
encontros e ações de protesto, tamanho das platéias
(que é enorme), vendas de livros (decolando além de qualquer
nível anterior, com pequenas editoras agora correndo para reimprimir
até livros dos anos 80), etc. E está aumentando. Quem está
disponível como palestrante não consegue nem começar
a administrar uma fração da demanda.
O governo Bush fez alguns movimentos para restringir o acesso a documentos
anteriormente secretos que, por esta época, seriam liberados. Neles,
há um bom pedaço da história da política mundial,
como a do Brasil. Em outro movimento, conforme informação
do boletim Secrecy News, o governo Bush teve relativo sucesso ao proibir
vazamento de dados à imprensa, numa espécie de "lei
da mordaça". O que o sr. pensa a respeito da forma como o
governo trata a informação?
O conhecido cientista político Samuel Huntington escreveu há
20 anos, em um texto padrão sobre a política americana,
que "os arquitetos do poder nos EUA devem criar uma força
que possa ser sentida mas não vista. O poder permanece forte quando
permanece no escuro; exposto à luz do sol, ele começa a
evaporar". Isso é bastante preciso. Naturalmente, os poderosos
usarão todos os meios possíveis para se proteger do escrutínio
público. Isso é particularmente verdadeiro naqueles que
têm uma veia profundamente totalitária, como os Reaganitas
e a administração atual (muitos deles são as mesmas
pessoas). O governo Reagan destruiu ilegalmente documentos a respeito
de como os EUA derrubaram os governos do Irã e da Guatemala, para
prevenir-se da liberação sob a regra que diz que os documentos
secretos devem ser liberados após 30 anos. Isso foi uma violação
tão escancarada que os historiadores do Departamento de Estado
-um grupo muito conservador- pediram demissão, em um protesto público.
O governo Bush está -mais uma vez naturalmente- tentando explorar
as circunstâncias atuais para fazer o mesmo. Claro que eles vão
fazer qualquer coisa para limitar a informação sobre o que
eles ou seus predecessores fizeram. Esse é um atributo regular
do poder.
O sr. foi recentemente (março/2002) à Turquia para um
julgamento que absolveu o editor de seus livros no país da acusação
de fazer propaganda política a favor do separatismo curdo. Como
foi o julgamento?
Correu tudo muito bem. O governo ficou embaraçado com a atenção
internacional sobre o assunto. Num movimento obviamente pré-planejado,
a corte rejeitou a exigência de meus advogados para que eu fosse
julgado, já que eu estava lá, de acordo com a lei turca.
A promotoria, então, retirou a acusação. Os militantes
pela liberdade de expressão no país - gente maravilhosa
e corajosa - ficou muito orgulhosa, e vê o resultado do julgamento
como uma vitória, apesar de todos saberem que é uma pequena
vitória. O sistema só ataca quando ninguém está
olhando. Logo depois que eu saí, eles abriram outro processo relativo
à segurança de Estado, desta vez me acusando diretamente
por declarações que fiz em Diyarbakir, a sede dos curdos,
no dia seguinte. Fiquei preocupado com a possibilidade de ter causado
problemas a alguém de lá, mas eles me garantiram que é
o oposto. Espero que sim.
*Marcelo Soares é jornalista
e colaborador do EmCrise.
Leia também a cobertura
da entrevista coletiva de Chomsky, produzida pelo EmCrise em fevereiro.
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