Pela unidade

"A gente precisa pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte, era isso o que meu pai dizia"
Raquel Trindade

Por Solange Cavalcante
EmCrise – 03/2003

Em 1988, Raquel Trindade foi convidada para lecionar na Unicamp, mesmo não tendo diploma universitário. Os conhecimentos transmitidos pelo pai ilustre (cujo poema Tem gente com fome foi gravado por Ney Matogrosso) e a luta contra a discriminação racial bastaram para que ela desse aulas de folclore, teatro negro e sincretismo religioso. "Quando cheguei lá", conta Raquel "só tinha um negro na turma de graduação. Aí eu pedi à Universidade para que fosse criado um curso de extensão para que eu pudesse ensinar folclore à comunidade negra e às outras graduações".

Na primeira turma de extensão universitária houve 170 inscritos para ouvir sobre folclore nacional e cultura negra. Para Raquel, samba precisa ser ensinado, sim. "Há coisas que as pessoas precisam saber. Precisa falar dos escravos de Campinas, da Fazenda Barão Geraldo, da Santa Genebra, Rio das Pedras. Lá, os escravos faziam rodas de samba de bumbo nas horas vagas. Precisa contar a história da dança, também. Nas Escolas Lavapés e Vai-Vai, o samba era dançado mais nos quadris do que nos pés. O samba de agora é todo copiado do Rio de Janeiro". Raquel fala com entusiasmo das coisas que a apaixonam: "Sou Vai-Vai, Corinthians e Obaluaê. Comigo é só preto e branco!".

A partir da procura pelo curso que passou a ministrar na Unicamp, a folclorista teve a idéia de criar o grupo Urucungos, puítas e quinjengues. Esses são nomes de instrumentos bantos que foram trazidos pelos escravos para São Paulo. "O Urucungo é composto de negros da comunidade, de funcionários da Unicamp, alunos e professores. A maior parte das danças do grupo foram pesquisadas e criadas por Raquel.
Enquanto falamos, o Urucungos canta e dança próximo a nós:

Minha mãe me deu uma surra
Com cipó de juquiri
Eu chorei a noite inteira
Não deixei ninguém dormir
No caminho de São Paulo
Quem achar o lenço é meu
Bordado nas quatro pontas
Foi Paulista quem me deu

E:

Mas eu não vou nesse samba com você
É que a polícia ta querendo me prendê

"Isso está no sangue", afirma Raquel. "Meu avô era velho de pastoril, minha mãe me ensinava as danças e meu pai era poeta. Meu filho está na Alemanha e minha filha na Bahia, ensinando o samba-lenço rural paulista e o samba de bumbo. Meus netos estão tocando. Em 1975, criei o Teatro Popular Solano Trindade, no Embu. É a coisa de preservar e passar o que a gente sabe às pessoas. Não é um trabalho só de carnaval, é da vida inteira".

Dona de uma voz esganiçada que lembra muito a da ilustre Clementina de Jesus, Raquel Trindade ajuda a puxar outro samba:

Pirapora, ê, Tietê
Oi, fizeram cadeia nova
E quiseram me prender

Esses sambas são cantados em responsório entre homens e mulheres, numa roda. Na dança, os homens avançam, as mulheres recuam e vice-versa.

Neste carnaval, o grupo Urucungos vai ocupar as ruas de Campinas. Já o pessoal do Teatro Popular Solano Trindade vai para as ruas do Embu, no centro e na periferia, dançando maracatu. "A gente precisa pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte, era isso o que meu pai dizia", relembra Raquel.