Ivaporunduva: uma viagem
Questões
como desenvolvimento sustentável, produção de energia
e transporte marcam distinção e semelhança entre
nossas comunidades e as dos descendentes de quilombos
Por Solange
Cavalcante
EmCrise 03/2003
A
viagem à comunidade quilombola de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira,
é demorada e cansativa. São 260 km até lá.
Mas é necessário fazer as seis horas num ônibus São
Paulo-Eldorado e mais duas num Eldorado-Ivaporunduva. Somente assim é
possível ter noção das dificuldades de transporte
que enfrentam os moradores das 53 comunidades de descendentes de quilombos
e os demais habitantes daquela região do Vale. A passagem entre
Eldorado e a vila custa R$ 3,00. Para uma população inteira
que vive da cultura de subsistência, o direito de ir e vir fica
bem restrito.
Sob um calor de louco, embarcam em Eldorado três dezenas de conhecidos,
parentes e aderentes. Todo mundo nos quilombos parece ter parentesco um
com o outro. Seguimos. A lataria bate, as pessoas contam em voz alta suas
novidades e o suor vai escorrendo. "Sabe a nossa prima, aqui?",
pergunta uma jovem senhora a meu guia Oriel Rodrigues, uma das lideranças
de Ivaporunduva. "Não sei o que o pessoal dela, lá
em São Pedro, anda aprontando. Todo o dia esse povo aparece na
televisão para reclamar". São Pedro é uma das
comunidades do Vale. "Fazer o quê?", responde a prima
citada. "Todo mundo sabe da leishmaniose e ninguém faz nada.
O jeito é aparecer na televisão mesmo". Informam-me
que há um surto da doença nas vilas.
Pergunto se a Saúde Pública e a prefeitura já tomaram
conhecimento. Todos me olham como se isso fosse óbvio. "É
como se não soubessem", dizem as moças.
O ônibus pára. Entra um sorveteiro e um vendedor de cocada.
Oriel e eu saímos de São Paulo às seis e meia da
manhã. Já são duas da tarde. Ele começa a
brincar: "Pena que você esteja com fome. Os parentes aqui me
disseram que minha mãe ainda deve estar na roça, caçando
a galinha do almoço".
A outra
margem do rio
Para
se chegar a Ivaporunduva, é necessário atravessar de canoa
os cerca de cem metros de largura que o rio Ribeira apresenta ali. Oriel
me conta que, quando estudava, ele e os amigos tiveram que dormir diversas
vezes do lado de cá do rio por falta de barco. Hoje, a prefeitura
mantém funcionários para fazer o serviço de travessia.
Ninguém se arrisca a transpor o rio a nado. É perigoso.
As casas da vila são quase todas de sapé. Mais tarde, na
penumbra da noite quente, vou conversar com Dona Benedita Silva, de 77
anos, avó de Oriel. Ela vai me dizer que, nas comunidades, é
só levantar a casinha de madeira, cobrir de capim e ficar embaixo
dela. "Aqui somos ricos da terra. Cada um faz a casa onde quer".
Por enquanto, vamos à mãe dele, Nilzete. Ela não
só cuida da casa como discute as questões de seu povo e
da vila na associação de moradores. Além disso, faz
parte do grupo de discussão de gênero. Quando chegamos, ela
já tinha matado uma galinha e preparado arroz, feijão, salada
e suco de limão, tudo da terra. E foi só acabar o almoço
para conversarmos longamente sobre a ameaça das quatro barragens
que Antônio Ermírio de Moraes quer construir no rio Ribeira.
Depois que se atravessa o rio e vai-se entrando vila adentro, a sensação
é a de que a amplitude nos caiu sobre a cabeça. É
um verde que se perde diante dos olhos e um azul firme no céu.
Oriel diz que, para fugir do calor, só dentro da igreja. É
verdade. Logo que entramos, o torpor vai desaparecendo. É uma construção
alta do século XVIII, cuja reforma parou no meio porque a empresa
responsável alegou falta de verbas. Aí apareceu a Rose,
uma menina de 15 anos que joga no time de futebol feminino da vila. Ela
mostra peças de fibra de banana que ela mesma teceu. E me convida
para ver o treino dos garotos no campo que a comunidade fez no meio do
mato.
Andamos por uma trilha entre as casas, beirando também os roçados.
O campo é de grama plantada, cercado de imensos morros verdes de
onde vem a água para as casas. Sentamos à beira do gramado
e os meninos reclamam de ninguém ter roçado o campo. Oriel
se justifica: esteve em São Paulo, estudando. Os outros arrumam
desculpas. O combinado é que cada um, por seu turno, corte a grama,
sob pena de pagar R$ 5,00 de multa. Agora a grama está tão
alta que a bola nem pula direito.
Rosângela pergunta se quero ir embora por causa da chuva. "Que
chuva?", surpreendo-me, sem ver sinal algum no céu. "Não
está ouvindo?", ela aponta para trás de nós.
O que ouço é como o som do vento, difuso, atrapalhado. Parece
mais um chiado grosso. "É a chuva chegando, batendo nas folhas".
Daí a pouco, sinto pingos grossos nas costas, na cabeça.
Temos que voltar, que essa veio forte.
O retorno é pela mesma trilha, agora encharcada. Piso na lama com
gosto. Mas como já nem posso abrir os olhos, tanta é a água
que cai, paramos numa casinha cuja dona, a Rita, está na janela.
Ficamos as três olhando a chuva das duas janelas da sala. Pela porta
da cozinha, vejo a montanha, aquela de onde vem a água, com fumaça
de nuvem no topo. Chega José, marido de Rita. Ele diz que esteve
lá em cima, pela manhã, com mais 10 companheiros. Eles foram
limpar o cano. "A água que nóis usa aqui vem direto
do céu", ele conta. O casal me oferece o café fraquinho,
fraquinho. Olho para as galinhas que amparam seus pintinhos sob as asas,
na chuva. Olho a montanha. Essa gente é afortunada.
É mais um sábado de baile em Ivaporunduva. O pessoal da
vila adora festar. Esta repórter, que provavelmente descende de
um estático moai, não dança nada e morre de vergonha.
Oriel pergunta se está bem para mim se ele for dançar sozinho.
Nilzete me leva à casa de Dona Benedita, sua mãe, uma velhinha
cujos cabelos brancos pendem em duas tranças. É noite e
há pouca luz. Sento-me no chão, ao lado dela, para ouvi-la
dizer: "Tudo nesse mundo sai da terra. Mesmo antigamente, a gente
só comprava o sal, o querosene e a roupa". Ela acha que as
coisas melhoraram porque se precisa de menos roupa: "Minha avó,
Dona Antônia Escolástica, usava saia com oito metros de pano!".
Ela fala de quando era moça, de quarar a roupa na pedra e de fazer
sabão de toicinho de porco. Também dos tatus, raposas, bugios,
monos, capivaras, dos bagres, cascudos. "A uma hora dessas, eu estava
no rio com meu pai, lanceando rede".
Falar do passado é assim, envolve a gente. Vejo que o passado de
uma velha senhora quilombola é bonito de lembrar, mas não
é mais exótico que o de outras da mesma idade. O que faz
a diferença eu descubro a seguir, quando pergunto sobre as barragens.
Dona Benedita não se altera, mas reage como a versão quilombola
das raging
grannies, as vovós ativistas do Canadá e dos EUA. "A
gente aqui é tudo contra a barragem. A gente ensinemo os menino
da escola a mandar o povo da barragem embora". Ela se refere a uns
"pesquisadores" que andaram por Ivaporunduva. Eles abordavam
as pessoas e perguntavam o que elas achavam da construção
das barragens. As mulheres cercaram o grupo, Nilzete Rodrigues à
frente, e recomendaram que eles fossem embora. As crianças foram
instruídas a gritar "Água sim, barragem não"
todas as vezes que visse os estranhos na comunidade.
Dona Benedita conta que, uma noite, a energia acabou. Ela não lembra
que foi em 21 de fevereiro de 1997 (www.defesacivil.cmil.sp.gov.br).
Nem chovia tanto mas, conforme a água do Ribeira subiu, uma árvore
puxou os fios da rede elétrica. O volume de água do rio
provocou a maior enchente já vista no Vale do Ribeira. Ao contrário
do que foi divulgado na época, o Ministério Público
apurou que o problema foi a abertura de duas comportas no rio Capivari,
no Paraná. Os prefeitos do Vale tiveram seis horas para avisar
as populações e tomar outras providências. Nada foi
feito. Como o rio Ribeira também estava cheio, tudo foi muito rápido.
80% da cidade de Eldorado ficou submersa. Dona Benedita não sabe
desses números, mas conta: "A gente via a criação
descendo o rio. Era frango, porco, boi. O bananal se foi todo". Ela
mostra o lugar de onde casas foram arrastadas pelas águas. Calculo,
por cima: estamos a uns quinhentos metros do rio, e seu nível a
uns vinte metros abaixo. A velha senhora pára um pouco, olha no
vazio: "Ninguém aqui quer barragem, não. Nóis
passemo a noite toda levando as coisas pro morro. Veio helicóptero,
fiquemos tudo preso aqui, até a água baixar". Impressiona.
De olhos
bem abertos
Domingo,
nove da manhã. Toca o sino de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos, chamando a comunidade para a assembléia bimestral
da associação de moradores. O povo chega devagar, caminhando
entre as galinhas que ciscam na porta da igreja. Pergunto a Ditão
Alves, outra liderança, como está a luta contra as barragens.
"Agora é mais importante pra nóis ir pro encontro do
MAB [Movimento dos Atingidos por
Barragens], em Brasília, do que pro Fórum Social Mundial
[dois dias depois]. Tem outras coisas pra afinar a viola". Concluo
que a preocupação entre eles é a mesma, e constante.
Já no século XVII, esse povo costumava tocar o sino da igreja
para avisar da chegada de estranhos pelo rio. Parece que,desde essa época,
o destino dos descendentes de quilombos é vigiar.
Como a reunião é vedada a gente de fora, tenho de arrumar
o que fazer. Oriel quer me mostrar a construção da pousada
que está sendo construída. Seguimos. No caminho, paramos
na casa dos maiores produtores locais de banana. Eles? Jogando dominó.
Oriel senta para conversar com os primos sobre gente conhecida. Fica decepcionado
ao saber do casamento de uma prima: "Ela nem me esperou", lamenta.
Mais um ano e estará formado em Direito Ambiental. Ele ironiza
a si mesmo: em breve não saberá nada sobre replantio de
palmito, semente crioula ou desenvolvimento auto-sustentável. Nos
quilombos, o que mais lhe perguntam é sobre pagamento de pensão
alimentícia. "As mulheres aqui não são bobas,
não", observa uma das primas.
Pergunto da enchente de 1997. Talvez Dona Benedita tenha exagerado. Seu
Antônio Ribeiro, de 73 anos, mostra aonde a água chegou.
Estamos num lugar alto, tão longe do rio, que nem é possível
vê-lo. É assustador saber que ele subiu tanto. Eles dizem
que, em se construindo as barragens, não há como prever
até onde a água vai chegar. 150 caixas de banana.
Mais caminhada e encontramos Antônio Pedroso, o Tostão, treinador
do time feminino de futebol. Ele diz que há um bom número
de mulheres casadas no grupo. "Já ganhamos dois torneios",
conta. "Agora a gente quer disputar o campeonato municipal".
Em 2000, Tostão ajudou a organizar o 1º campeonato quilombola
de futebol. "Só que a Secretaria de Esporte do Município
não dá apoio", lamenta.
Tostão também vai me acompanhar à pousada em construção.
Vamos por uma rua estreita onde foi colocado cascalho para facilitar a
subida. Enquanto subimos, meus dois guias mostram o Vale, que vai ficando
num nível mais baixo. Aquilo se perde no horizonte, envolto em
névoa, tudo terra quilombola. Não vejo casas, a não
ser em alguns pontos. Onde moram todos? Oriel e Tostão garantem
que eles estão lá. "O pessoal do censo demográfico
também não alcança o povo que mora no mato",
revela Oriel. "Como a pesquisa é por amostragem, os censores
vêm às vilas e ignoram os locais mais distantes. Há
locais aqui em que só é possível chegar de barco".
Eles me dizem que, com a titulação da terra, é a
primeira vez na História do Brasil que o negro tem direito à
propriedade. "Quando aconteceu a Lei Áurea, ele saiu da senzala
e foi pro morro. Hoje, o morro desaba e ele não tem onde morar".
Oriel está se referindo aos deslizamentos ocorridos em Minas em
janeiro. "Aí morrem seis crianças da mesma família.
A imprensa vai lá e o repórter pergunta como é que
a mãe está se sentindo. Ele esperava que ela respondesse
'E vai rolar a festa/O dono do gueto mandou avisar.../'".
Chegamos à pousada, com a construção em andamento.
A verba para construí-la, ainda do governo Mário Covas,
estava destinada à compra de um caminhão para transportar
a produção de banana. Se a fruta sofre abalos no transporte,
adquire as pintas pretas que fazem o preço cair. Contudo, o dinheiro
mudou de curso e foi parar na construção da pousada. Os
quilombolas não entenderam a decisão do governo do Estado.
Mas a pousada está ali, quase pronta, e agora eles discutem como
administrar a acomodação e o fluxo de turistas.
Voltamos. Oriel me pede licença pra jogar dominó com os
amigos. Eu me contento mesmo é em sentar no chão, perto
das galinhas, para chupar cana. Nilzete ainda me chama para conversar
com Maria da Guia, sua cunhada. Maria é mulher de Zé Rodrigues,
do Movimento dos Atingidos por Barragens, o MAB. Ficamos de nos ver para
falar mais detidamente sobre as discussões de gênero que
as duas encampam na comunidade, sobre artesanato, saúde e educação.
Agora não é possível: o ônibus para Eldorado
passa às 17h. Se o perdermos, só poderemos sair da vila
se alguém der carona. Faço perguntas sobre o transporte
público, mas não há tempo. Muita coisa vai ter de
ficar para depois. Oriel e eu carregamos nossas coisas até o rio
e entramos no barco. Ivaporunduva vai ficando para trás. A impressão
fica. Vamos nos encontrar de novo.
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