Olá Professor,
há quanto tempo!
...João
Antônio abandona mais uma vez as elevadas altitudes do formalismo
estilístico, ou os vales sombrios e profundos de seus próprios
conflitos interiores, para sair em campo - repórter - com olhos
para ver, coração para sentir e cabeça para pensar
(Enio Silveira, contra-capa)
Por João Antônio*
Texto extraído do livro Casa de Loucos,
1976.
(Ed. Civilização brasileira)
Nono andar.
Havia policial à paisana, grisalho e blusão fora da camisa
na porta de entrada do edifício e com ele precisei deixar tudo,
embora fosse avisando, tinha hora marcada, seis da tarde, com o professor.
O homem me pegou o nome, ar, endereço, barba por fazer, a que vinha
e quanto tempo ia demorar. Percebo. O professor está sendo sondado
à risca, todos os movimentos. Então, abri o braço,
como se já fosse desguiar:
- Meu senhor, se isso vai criar qualquer tipo de problema, não
visito ninguém. Não estou aqui porque quero, estou a trabalho.
Não quero galho, até já estou querendo ir embora.
O grisalho de blusão claro fora da camisa provavelmente julgou
estar diante de um maluco. Acho, nessas ocasiões, melhor botar
a boca no mundo ou fechar o bico de vez. Assim, passo por pirado e me
tiram o olho de cima. O recurso, reconheço, não é
tiro e queda. Já vi policiais batendo em doente mental. E quando
a polícia mata alguém, a cidade não põe luto.
O policial garatujou, com esforço, errando duas vezes os meus dados
num caderno de anotações. Não era um homem habituado
a escrever e devia tomar o registro de todas as visitas do professor.
Peguei o elevador, pé atrás.
O professor havia envelhecido pouco, apesar de nunca tê-lo visto
- era o mesmo homem das fotografias, onze anos antes, ministro, antes
de o cassarem e de ir para o exílio. Lépido, miúdo,
baixinho, rosto escanhoado, olhos firmes, vivos, alegria das pessoas dinâmicas,
coisas que não tenho.
Com sotaque nosso, blusão fora da calça, me atendeu de pés
no chão no seu apartamento do Posto Seis, em Copacabana. Aquele,
o homem. Eu lhe apertei a mão, duas vezes; a Segunda, ele notou,
para lhe olhar nos olhos.
Tímido, pelo menos a princípio chamando de senhor um homem
de pés no chão do apartamento amplo, ele percebendo que
eu dissimulava mal a admiração. Leve, rápido, não
fumando, foi pedir café à empregada, ofereceu suco, preferimos
café. Pedi para fumar. Grossura - claro que aquilo o incomodava.
Aí, lhe peguei num lance, o tamanho, personalidade. Concordou discordando,
como se dissesse: "ô, rapaz, eu já me esqueci de fumar
e, você vem me lembrar - tenha jeito, dê-se ao respeito".
Falou como um mais velho:
- Fuma. Você pode.
Achou graça e começou a falar, engraçada, pitorescamente.
Curioso alguém se interessar em como ele havia vencido o câncer.
Despejou tudo de uma vez, quase tudo. Ou: o trânsito ridículo
de médicos estrangeiros que lhe escondiam a doença, dizendo
tuberculose. Ridículos, principalmente em Paris, onde ele exigia
ver e ouvir os resultados de todos os exames. As pessoas evitavam o nome
da doença como se evitassem a morte. Era um câncer mortal.
Havia percebido pela primeira vez que ele era mortal e, como amasse a
vida, sentiu que não iria ter nada para colocar no lugar. Afinal,
câncer era coisa que podia acontecer a um primo seu, a um parente
ou contra-parente distante, ao vizinho do prédio, não a
ele. Nunca havia pensando, sentido, amargado, que era mortal. Confessa
que lhe deu medo. E pressa. Urgente fazer as coisas, terminar um livro.
Resolveu jogar franco com o médico parisiense: "O senhor pode
me dar três meses de vida, lúcido?". Nada. Tinha de
operar. "O senhor tem uma bomba no peito". A bomba iria explodir
a qualquer momento, tomaria conta do corpo todo. Não havia ilusões,
no entanto. Mesmo operando, um fato líquido e certo, noventa e
cinco por cento das pessoas operadas de câncer pulmonar não
escapam. Não operasse, não ficaria nem entre os ralos cinco
por cento restantes. Até lhe dizerem que era câncer, passou
por vários dribles dos médicos franceses. Um deles, dissimulou,
com jeito, fazendo o exame clássico de tuberculose pulmonar, e
o professor teve de pronunciar, repetidamente, trinta e três, em
francês. Aí, o médico cometeu uma ingenuidade de bom-tom,
verificando-lhe os olhos: "o senhor está pálido".
O espírito brasileiro do professor universitário cortou
rente com uma coisa que causa vexame ao espírito francês:
"não, estou muito pálido. Na verdade, sou um mulato".
Paris é o grande centro da medicina na Europa e já tinham
tudo para, em três dias, operá-lo. Mas preferiu operar no
Brasil. Os franceses torceram o nariz, escandalizados.
Os homens que o deixaram entrar aqui, contavam com sua morte infalível,
inadiável, cancerígena. Por isso, exilado político
de 64, foi deixado vir. O apartamento de sua propriedade, na rua Souza
Lima, estava ocupado, alugado. Então, o permitiram num hotelzinho
do Leme, sob vigia permanente. Ridículo, um homem tão miúdo
e grande, guardado pelos profissionais da polícia, pequenos, broncos,
patoludos. Miudinho, não se sabe tenha aprendido karatê,
aikidô, kung fu ou judô lá no estrangeiro por onde
andou, lecionou, trabalhou, sobreviveu estes anos todos, onze. Ele, falando,
procura tirar a prisão domiciliar de letra, cariocamente. Humorado,
recebe e responde à estupidez que o vigia. Oficialmente, comunicam-lhe,
está protegido contra atos terroristas. Olhos miúdos, cara
limpa, aconselha:
- Ótimo. Mas me protejam só a cinco metros de distância,
pelo menos.
Câncer maldito mesmo. Às vezes, as pessoas que o cercavam,
amigos, um irmão, parentes, amigas, botavam uma cara de pavor.
Pareciam que tinham a doença e não ele, a um passo da operação
delicadíssima. Noventa e cinco por cento morriam.
A diferença entre ele e os outros, uma só, esta: os outros
pensaram que 95% morrem; ele, procurou encarar o outro lado - 5% se salvam.
E tratou de se meter entre os 5%. Provavelmente todos, além dos
homens do governo, contavam com sua morte. Os amigos, os admiradores,
o geral das criaturas. Todos a um.
Ele está enroscado na poltrona e, neste momento, sou mais entrevistado
que ele. Um brilho nos olhos miúdos, notando os ritus da minha
cara e imediatamente jogando na linguagem um palavrão leve, uma
descida para a gíria. Tem o domínio da conversa, detém
o poder da mudança do tom e rumo dos assuntos. Inteligente nessa
manobra, assume um liderança natural: o núcleo da conversa
está em suas mãos. Sempre.
Revelou, sem modéstia. Não acreditava em suas habilidades
literárias a ponto de produzir algo útil ou de exemplaridade
sobre o capítulo do câncer, provavelmente o mais cavernoso
(uma caverna no peito) de sua vida.
- Mas se o senhor escrevesse como fala...
As pessoas não escrevem como falam. Comportam-se, disciplinam-se,
empostam-se. Há imposturas, a naturalidade vai embora, ninguém
deixa passar a chance de parecer inteligente, espirituoso, um homem que,
de certo modo, está acima dos outros.
- Por que você está me chamando de senhor?
Falando, é colorido, vivo, direto, humorado. Tem o poder da condução,
o que já foi dito. É líder natural, está em
tudo e, se não mostrou essa qualidade ao longo dos anos, terá
sido por outro motivo que não a vocação.
Veio uma amiga, depois da operação, lhe disse que ele nem
supunha quantos amigos o queriam bem e quantas as pessoas, das mais diversas
faixas, o admiravam. Naquela tarde, por exemplo, só se falava dele
no cabeleireiro.
- De mim ou do câncer?
Está aí. Mas não havia ironia, hostilidade, amargura
na observação. Era o que era. Por mais que ele fosse assunto,
o câncer seria repercussão nacional maior que ele.
Os homens do governohaviam mandado distribuir nota oficial, câncer.
Indisfarçável, a crueldade seca da nota. Neste mundo todo,
a doença queria dizer morte. Certamente contavam fazer o seu enterro.
Depois, iriam recolher uma boa imagem. Foram bonzinhos, humanos, democráticos
e cristãos - respeitavam a condição humana. (Embora
não respeitassem a liberdade de pensamento e a ideologia de ninguém.)
Um policial o acompanha, aonde vai. Vai à praia, o protetor segue.
Vai a um chopinho com amigos, no calçadão de Copacabana,
ali pelos lados do Posto Seism atrás vai o policial. Atravessa
o calçadão, ganha as areias, senta-se. O protetor fareja.
Procura as águas, o protetor se levanta, avança na vigia.
Lá no hotelzinho do Leme, uma vez, um desses policiais que o guardam
dia e noite, o perde. Quando volta ao hotel, o policial está verde:
- Professor, eu pensei que tivesse perdido o senhor.
- Sim? Mas eu estou vivo, olhe aqui, não está vendo?
O policial cheio de pavor. Confessou que se o professor sumisse, morresse
ou lhe houvesse acontecido algo, certamente lhe iriam botar num pau-de-arara
e seria torturado até que dissesse tudo o que sabia e também
o que não sabia.
O professor, sério. Rosto crispado pela primeira vez em mais de
uma hora de conversa. Que regime é esse em que até os policiais
que representam as mais altas autoridades da segurança, têm
medo de serem torturados? O que acontecerá, em torturas, aos pobres-diabos
que não são policiais, nem gente de confiança do
governo?
Torturados até o limite do desmaio. Acordados a água fria,
a tipos especiais de choque, a ponta de cigarros, sabe-se lá. Refeitos
a comprimidos, recomeçado o interrogatório. E a tortura.
Sérios, os dois. De vez em quando olhávamos, maquinalmente,
para a porta de entrada do apartamento. Devíamos falar naturalmente
aquelas coisas ou baixar o tom de voz?
Faz menos de dez dias, um advogado da Rua Uruguaiana, indo a seu escritório,
foi seqüestrado por homens que se disseram do DOPS. Levado ao Alto
da Boa Vista, encapuçado, interrogado por policiais encapuçados.
Não tinha nada a declarar. Os torturadores preferem, segundo o
advogado, esse tipo de homem - o que não tem nada a declarar. Foi
batido, surrado, submetido a choques, metido em cela que mal cabia um
homem. Ameaçaram o homem que não tinha nada a contar: trariam
sua mulher e ele iria ver as coisas. Abobalhado, dizendo nada ter a declarar,
concordou. Trouxessem sua mulher, fizessem o que bem entendessem. Havia
outros presos, sofrendo iguais torturas, gritos à noite e barulhos
de trambolhões pesados. Sofreu três dias, aturdido ou inconsciente,
o fizeram assinar uma porção de papéis de que não
se lembra. A bestialidade não pode ser contada diante de mulheres
ou crianças. Os encapuçados o soltaram depois, com esta
frase:
- Passe bem, doutor, precisando de alguma coisa é só nos
procurar.
Depois de três dias de tortura debaixo da mesma pergunta:
- Qual é o seu codinome?
Saiu. Procurou a Ordem dos Advogados do Brasil, catou os jornais, um único,
O Estado de S. Paulo, publicou uma nota na edição de 8-3-1975.
Mas há outro advogado sumido, provavelmente seqüestrado, mesmas
condições.
O professor universitário me ouve, olhos baixos. Olhamos, quando
em quando, para a porta da entrada do apartamento. O Ministro da Justiça
diz que não há tortura no país.
Há medo generalizado no país, o que certamente será
resultante de tanto progresso, fartura, liberdade, ordem, igualdade, segundo
a ótica dos press releases oficiais. Lá fora, na França
ou na Inglaterra, dizem que quando se vê um policial, imediatamente
se tem a sensação de segurança e que se fica mais
à vontade. Aqui, ontem, passando diante da PMGB, da Rua Toneleiros,
procurei a outra calçada da rua, evitando olhar os fardados e andei
depressa. Há dez anos vimos neste crescendo: policiamento; policiamento
ostensivo; policiamento muito ostensivo. Hoje, temos repressão
ostensiva. Seqüestros indiscriminados, interrogatórios com
tortura, meios bestiais e desrespeito completo pela pessoa humana. Há
tanto policial, principalmente em São Paulo, que já não
os notamos mais. Estamos calejados. Estamos empedernidos com a bestialidade.
Convivemos com coisas terríveis e não estaremos ficando
frios, nós, um povo sentimentalóide, outrora vivendo num
país cordial, onde havia, segundo um poeta, escola risonha e franca?
O professor diversifica assuntos, passamos aos desenhos de Poty, humor,
jornalismo, indianismo, vida universitária, futebol, polícia,
sexo, violência, literatura, futebol de novo. Atiçadamente
criativo, imaginoso, me sugere, rápido, duas ou três idéias
para publicação nova em que trabalho. Baixinho, poucos cabelos
brancos, rosto escanhoado, enroscado na poltorna, descalço, falando
simples e bem. Um homem que libera o espírito do interlocutor,
embora o envolva com liderança. Literalmente, como se diz, é
um otimista.
Idéias loucas tem e gosta, inda mais dos efeitos. Tem carioquice
ao contá-las, saboreia os efeitos. Narrador hábil, extrapola.
Nunca pensava que pudesse e teve de deixar o cigarro. É o melhor
dos vícios, nem é um vício. Chamar o cigarro de vício
menor é outra impropriedade. Quando vivermos numa sociedade realmente
civilizada, teremos cigarros de tudo: de proteínas, vitaminas,
degustações variadas, leves e pesadas. Haverá uma
geração de homens e mulheres incrivelmente elegantes, nenhuma
barriga, ombros largos, nenhuma celulite. Pois, cigarros alimentícios,
motivarão a chamada digestão sem excrementos. Veja, a princesinha
da Inglaterra comendo chocolate. Todos sabem que ela comerá e depois
fará um cocô fedido na privada real. Mas um vagabundo da
Galeria Alaska fuma um cigarro e não produzirá nenhum dejeto.
Tomamos café, mas café é só boca de pito,
para acender a vontade do cigarro. O bom da comida fina e regalada é
o cigarro que vem depois. Como é bom o cigarro, depois de duas
horas de cinema em que não se pode fumar. O cigarro, como é
bom. Trepar também é bom, o melhor dos esportes, o que exercita
e mexe diretamente com tudo, músculos, cabeça, tronco e
membros. Bobagem, essa história de agora se praticar judô,
karatê, ioga. O exercício sexual é mais completo.
Voltando ao cigarro, ele não é um vício, é
um companheiro, uma segurança psicológica. O professor fumava
três maços por dia, hoje lamenta que o cheiro do cigarro,
lhe chegando, lhe faça mal. Até o beijo na boca de mulheres,
naquele tempo, era melhor. Não lhes sentia o gosto do cigarro.
Trepar é bom para a saúde. Mas o bem-bom é aquele
espaço entre uma trepada e outra, longamente, na hora neutra em
que não se sabe se continuar ou não e, então, fuma-se
um cigarro. Ah, entre uma e outra, o cigarro. O mal é que contém
nicotina. Nas civilizações futuras, o homem pensará
em cigarros de proteínas, vitaminas e sais minerais. Serão
todos fortes e limpos, espadaúdos e sem barriga, maravilhosos e
enxutos. O cigarro não mais um vício e, sim, um companheiro
de utilidades.
Pensavam que ele morreria. De repente, seu nome pula nos jornais e revistas,
está escrevendo coisas. Estão longe de supor tudo sobre
o homem e seu despojamento. Provavelmente estejam com medo de suas verdades.
E não dele, criatura miúda, naturalmente bem-humorada, ar
fundamentalmente brasileiro, cara limpa.
Voltamos á vida policial da cidade. Há um mistério
em Ipanema com uma garota que matou dois namorados. A conversa dá
para a ruça, de novo. Ele não vai visitar os amigos, seria
o mesmo que entregá-los ao DOPS. Telefona, marca encontros na porta
do prédio. E sai para conviver com eles nos bancos do calçadão
do Posto Seis ou nos chopes dos bares. Atento, um policial se intromete
e diz que o vai proteger de algum ato terrorista ou subversivo.
- Ótimo. Mas fique a cinco metros de distância, pelo menos.
Olha-me. Passei duas horas em seu apartamento e não ouvi uma lamentação
do homem cassado, perseguido, sofrido, um pulmão fora do peito,
o câncer jogado fora, abriram-lhe todo o peito na operação.
Mais alegre, descontraído e saudável que eu, o professor
universitário Darcy Ribeiro disse:
- A gente não pode dar trela. Senão, os policiais sentam
à mesa com a gente e tomam conta.
*Saiba mais:
Um
bacanaço chamado João Antônio
A
grande tacada de João Antônio
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