Meu
Reino Encantado
Fazia
tempo que ele não ia ao Bingo, segundo o que eu e as duas senhoras
sentadas à frente do homem pudemos apurar. (...) - De vez em quando
eu vou catar latinha de alumínio no Terminal, ontem consegui 2
reais e comprei um bife
Por Vanessa
Barbara
EmCrise - 25/09/2002
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Ninguém nunca conseguiu provar nada contra ele. Falam, falam, mas
ainda não provaram que ele rouba.
Estava sentado no banco da frente.
- Por isso eu vou votar no Maluf. Sempre apoiei ele, desde mil novecentos
e oitenta e dois.
Conversava
com outro senhor grisalho; sua careca movia-se como se estivesse discursando
no parlamento romano. Não estava. Apertou os olhos e mostrou um
porta-documentos de plástico.
- Vou votar nestes aqui: delegada Rose e o Nelo Rodolfo. Grandes pessoas.
E simpáticos.
O
companheiro ao lado fez menção de comentar alguma coisa,
mas o homem prosseguiu:
- Este documento aqui é da minha namorada. Fui ver ela ontem. Ela
mora no Imirim, uma delas; a outra é de Cirade Tiradentes. Paula,
o nome dela, moça muito bonita: tem olhos azuis.
Não faço idéia a qual das duas ele se refere.
- Porque é paulistana da gema, por isso é que é boazinha,
se bem que a outra é de Belém do Pará. Pelo menos
não é baiana, nunca mais caso com baiana.
O homem já falava alto. O topo de sua cabeça se voltava
para todos os pontos cardeais, como um pirocóptero. O senhor sentado
na poltrona ao lado limitava-se a concordar.
- Eu casei com uma baiana terrível. O nome dela era Felizarda.
Ela controlava a minha vida, a mulher só queria o meu dinheiro.
E olha: era feia...
Riu, obviamente sozinho. Àquela altura, a lotação
inteira escutava ou fingia não escutar, com o olhar parado em algum
ponto de sua careca. "A minha irmã se chama Dirce", prossegue,
com o indicador suspenso no ar, como se estivesse dando uma lição
de moral.
- A Dirce, que é a minha irmã, dizia pra eu largar a Felizarda.
Mas eu não largava. "Nilso", ela dizia, a minha irmã,
não a Felizarda, "ninguém pode ficar mandando na sua
vidinha, não". Mulher é uma peste, mulher nenhuma presta.
Não é verdade? Todas elas.
Então ele tomou coragem e finalmente largou a Felizarda, no ano
da graça de mil novecentos e noventa e cinco, como pudemos atestar,
e desde então sua rotina era a mesma.
- Vou chegar em casa, tomar meu banho da tarde, colocar bermuda e escutar
música. A Dirce, que é a minha irmã, também
gosta de sertanejo. Eu já fui no Raul Gil cantar a música
do Daniel, "Meu reino encantado". É tão bonita.
E amanhã eu vou ao Bingo.
Fazia tempo que ele não ia ao Bingo, segundo o que eu e as duas
senhoras sentadas à frente do homem pudemos apurar. Não
tinha sabonete para levar de prenda e nem pasta de dente, só que
dessa vez prometeram que ele não precisava levar, caso não
tivesse.
- Foi a Rosinha que me disse, Rosinha é companheira minha, eu encontrei
ela na estação do metrô. De vez em quando eu vou catar
latinha de alumínio no Terminal, ontem consegui 2 reais e comprei
um bife.
Só
então percebeu que o homem ao lado estava de pé, tentando
passar para o corredor. "Já vai descer?", perguntou,
recebendo uma resposta afirmativa do homem. Recomendou lembranças
aos parentes.
Sentada atrás do homem careca, eu tentava cutucar as costas dele
com a ponta de uma caneta. As senhoras voltaram a tricotar, o careca desceu.
Foi isso.
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