Temos que humanizar as religiões

Por Giovanna Modé
EmCrise – 26/01/2003

Ela defende a igualdade das mulheres num mundo onde a tradição ditada pelo próprio livro sagrado, o Corão, coloca a figura feminina numa posição inferior. Seu discurso fez com que ela entrasse para a lista negra de alguns grupos fundamentalistas islâmicos e, por isso, mudou-se há 10 anos de Cairo para Portland, nos Estados Unidos. Durante o III Forum Social Mundial, a escritora egípcia Nawal el Saadawi (foto) fala à Ciranda sobre a situação feminina no mundo árabe, a sociedade civil no Egito e critica as religiões. Deixa claro que lá ela não é exceção. “ Existem muitos que pensam como eu. O problema é que eles não têm voz.”

Enquanto ela é perseguida, seus livros correm o mundo. Quase todos sobre a situação da figura feminina no islamismo, já foram traduzidos para mais de 30 idiomas (no Brasil, há apenas um deles: A face desnuda da mulher árabe).

Nawal foi presa em 1981 no governo de Anwar al-Sadat e a revista que editava, chamada Health, foi fechada. Dez anos mais tarde, o feito se repetiu em mais uma tentativa. O governo fechou a revista Noon, também por ela editada e, seis meses mais tarde, a Associação de Solidariedade, à qual pertencia. Ela, entretanto, aos 70 anos, passa otimista a mensagem de que faria tudo outra vez. “Tenho dificuldades desde que nasci, simplesmente porque nasci mulher naquele contexto. Mas na verdade nunca tive medo de lutar” . Bem humorada, ela narrou que um de seus livros escreveu durante os três meses que esteve presa. “Com o passador de sombra da minha amiga, em rolo de papel higiênico”, disse.

EmCrise: Como é a relação entre religião e feminismo?
Nawal el Saadawi: Por causa da religião, nós somos culpadas em nosso país. Somos culpadas por ser mulheres e eu, sobretudo, por estar aqui falando tudo isso. Todos os livros religiosos inferiorizam a mulher de alguma forma. Não só o Corão, mas a Bíblica também. Sou jurada de morte pelos fanáticos religiosos. Sim, o fanatismo é o problema. Sei que há muito intrínseco na maneira de ver o mundo das pessoas, mas isso tem que ser mudado. Temos que construir nossa própria filosofia baseada nos direitos humanos.

Como começou a luta para quebrar as tradições milenares em relação à mulher árabe?
Nawal el Saadawi: Quando eu era pequena, já invejava muito a liberdade do meu irmão. Sempre me lembro que nunca podia fazer a mesma coisa que ele. Além disso, comecei a questionar muito sobre muitas coisas, inclusive sobre Deus, quem seria Ele. Então escrevi isso numa redação e a professora me deu zero, porque refletir sobre aquilo era proibido. Minha mãe já pensava diferente e disse que “eu poderia continuar pensando nisso sim, que a professora estava errada”. Comecei a escrever nessa época e nunca mais parei.

A senhora é contra a religião, mas acredita em Deus?
Nawal el Saadawi: Eu creio em Deus e ele está dentro de mim e não num livro. Temos que ser livres independentemente de religião ou nacionalidade. Portanto que mudemos essa crença. Minha avó era analfabeta e nunca havia lido o Corão. Me ensinou que Deus representa simplesmente justiça. Ou seja, temos que humanizar as religiões.

Como a sociedade civil está se organizando no Egito? A senhora representa minoria? Porque tão poucos no Fórum?

Nawal el Saadawi: Sim, somos apenas 10 aqui. Mas represento o pensamento da maioria, o problema é que simplesmente não têm voz, são pouco ouvidos. E porque não estão aqui? Por que não querem? Pelo contrário. Os conflitos que temos estão tão graves que muitos dos que queriam estar aqui procurando uma alternativa estão presos e o resto simplesmente não tem dinheiro para pagar uma passagem de avião. Os dez que estão aqui foram convidados e ganharam a passagem. Eu não teria dinheiro para vir se não fosse assim. Outra questão é a mídia, que tem que começar a agir para beneficiar as pessoas. Quantas pessoas do mundo vivem onde o governo monopoliza os meios de comunicação e nem fazem idéia de que estamos hoje aqui reunidos?

Como enxerga o Fórum hoje?
Nawal el Saadawi: Aqui nós somos mais de 130 mil e em Davos eles são apenas mil. Temos que fazer alguma coisa e lutar contra o genocídio econômico que se está fazendo na África, Ásia e América Latina. Temos que nos unir contra todas as divisões, de raças, sexo, cor e etnias, para que se humanize esse mundo. A guerra está aí. Temos que parar com o terror na Palestina. Não pagamos pagar o petróleo com sangue, não é certo.