Cenas do primeiro dia

Por Vanessa Barbara
EmCrise – 24/01/2003

A Cena 1: Acampamento da Juventude após uma noite de tempestade. Chuveiros ao ar livre, banheiros lotados, córregos de lama e de nhacas não identificadas. Sacos de dormir encharcados, totalmente inutilizáveis. Há quem suporte qualquer coisa para participar do Fórum (ou de uma festa, talvez).

Cena 2: Ginásio Tesourinha, acampamento da Via Campesina. Camponeses de diversas partes do mundo amontoam-se, com ou sem colchonetes, nas arquibancadas de cimento. Dormem por ali mesmo. Na entrada do alojamento, uma inscrição feita com grãos de milho: “Globalicemos la lucha. Globalicemos la esperanza”.

Cena 3: Marcha de abertura do Fórum. Pessoas por todos os cantos empunhando bandeiras, causas ou simplesmente seguindo as filas. Um palhaço tirava fotos de cima de sua perna-de-pau panorâmica e distribuía pedaços de alface para os manifestantes. Apenas repartindo é que se acaba com a fome, era o que queria dizer. Velhinhas agricultoras de Santa Catarina, peruanas feministas chamando para a luta armada, camponeses, PSTU, estudantes, freiras, pessoas perdidas. Todas pequenas, mas movidas por muita coisa.

Cena 4 – clímax: Solenidade de instalação do Fórum Social Mundial, prédio da PUC. Cerimônia aberta apenas a delegados, imprensa e gente com ares de importância. Celulares tocam a cada 15 segundos. Fotógrafos digladiam-se para conseguir fotos dos narizes das autoridades. Uma diretora de certa organização trabalhista, sem crachá, procura arranjar uma poltrona na área reservada, através de um “sabe com quem você está falando?”. Nos arredores, um jornalista de televisão, com terno e cabelo engomado, circula pela área vip e tenta entrevistar gente famosa. “O que você acha da questão da guerra?” -- ou algo assim. Todos perfumados, maquiados e com cheiro de hotel; pelo visto, bem distantes de qualquer tipo de guerra.

Um cidadão começa a divulgar os resultados de uma pesquisa sobre globalização. Entre os americanos, a maioria acredita no poder das pessoas de controlarem seus próprios destinos. Um celular apita incessantemente, e muita gente se incomoda em suas poltronas. Os chineses consideram a globalização como conseqüência da evolução natural da história. Mais telefones tocam. Países subdesenvolvidos tendem a priorizar questões econômicas, apesar do estado de urgência social em que se encontram. Cada aparelho que apita faz com que dezenas de cidadãos remexam as bolsas, “é meu, é meu”.

Embora pouca gente esteja realmente prestando atenção, as autoridades continuam discursando. Lá fora, um movimento negro brada: “Rigotto racista”, chamando a atenção de parte dos jornalistas, principalmente aqueles cuja pauta é “o Fórum pitoresco” ou o Fórum radical. Mas a maioria está mesmo preocupada com as declarações das mesmas pessoas – provavelmente não das velhinhas agricultoras do interior de Santa Catarina, presumo – e decide passar mais um pouco de pancake no rosto para que o nariz não brilhe no vídeo.