A queda do Império US$

O analista político e professor de História Said Barbosa Dib fala ao Jornal "O Sul" sobre as verdadeiras razões da guerra no Iraque, a batalha entre dólar e euro, o esfacelamento da hegemonia norte-americana, os novos caminhos da política mundial e a saída para o Brasil.

Fonte: Jornal "O Sul"
EmCrise – 7/4/2003

 

"O Sul": Por que os Estados Unidos estão interessados em atacar o Iraque?

Said B. Dib: Sobrevivência. O que está em jogo é uma gama de interesses estruturais vinculados não somente à esfera governamental norte-americana e seu complexo industrial-militar, mas a todo o gigantesco sistema financeiro mundial baseado no patrão dólar. Sistema criado em Breton Woods, no pós-Segunda Guerra, reelaborado unilateralmente em detrimento dos países em desenvolvimento durante a crise do petróleo na década de 70, mas que mostra-se especialmente frágil nos últimos anos por motivos diretamente vinculados à questão energética. Segundo W. Clark, do jornal "Indy Time", o temor do Federal Reserve (Banco Central americano) é de que a Opep, nas suas transações internacionais, abandone o padrão dólar e adote definitivamente o euro. O Iraque fez esta mudança em novembro de 2000 (quando o euro valia cerca de 80 centavos de dólar) e na verdade escapou com perfeição da depreciação do dólar frente ao euro (o dólar caiu 15% em relação ao euro em 2002). Este foi um precedente que apavorou a cúpula de poder anglo-americano e provocou a "inexorabilidade" da guerra.

Poderia explicar melhor esta relação dólar - petróleo?

Said B. Dib: O chamado papel-moeda fiduciário (dinheiro que circula na economia) representa um símbolo ou uma garantia de valor de compra que, teoricamente, representa uma riqueza real consubstanciada no desempenho do PIB de cada país. Até a Segunda Guerra tínhamos o padrão ouro. No fim da Guerra, o dólar passou a ser de fato, por convenção decorrente da força geopolítica norte-americana, a divisa de reserva do mundo. Em 1971, Nixon deu um calote nos países em desenvolvimento, abolindo definitivamente a exigência do lastro-ouro, fato que está relacionado com a maximização posterior da crise das dividas externas do Terceiro Mundo. Hoje, mesmo sem garantia alguma na economia real, o dólar representa ainda aproximadamente dois terços de todas as reservas de câmbio oficiais. Mais de quatro quintos de todas as transações estrangeiras e metade de todas as exportações mundiais baseiam-se numa moeda completamente fictícia, cujo lastro assenta-se apenas no potencial bélico norte-americano. Além disso, todos os empréstimos do FMI são denominados em dólares. Mas quanto mais dólares circulam fora dos EUA, ou investidos por possuidores estrangeiros em ativos americanos, mais o resto do mundo tem de fornecer aos EUA bens e serviços em troca destes dólares. Para os EUA, produzir dólares não custa quase nada. Isto significa que os americanos estão importando vastas quantidades de bens e serviços virtualmente gratuitos. Uma vez que muitos dólares possuídos por estrangeiros não são gastos com bens e serviços americanos, os EUA são capazes de manter um enorme e crônico déficit comercial sem aparentemente quaisquer conseqüências econômicas maiores. Os números mais recentes mostram, por exemplo, que em Novembro de 2002 as importações americanas foram 48% superiores às exportações. Nenhum outro país poderia manter um déficit comercial tão grande, impunemente.

Mas esta não é uma interdependência? Não faz parte da lógica inerente à globalização? Ou seja, dentro da divisão internacional do trabalho, não dependemos também dos investimentos deles?

Said B. Dib: Não é bem assim. Na verdade, a situação de interdependência não é algo ahistórico, inexorável, que não considere a vontade humana e as soberanias das nações como contrapontos à dependência. Tudo depende apenas de decisão política e oportunidade. A atual situação mostra que o bloco de poder mundial, capitaneado pelos EUA, está se esfacelando. As resistências francesa e alemã mostram estas possibilidades e já são sintomáticas do que estou falando. Apenas os países que acreditarem no mito da inevitabilidade da tal globalização fracassarão ante tudo que está ocorrendo. Apenas os que não souberem tirar proveito desta situação de troca de lideranças mundiais e que persistirem em manterem-se atreladas ao dólar, irão pro brejo junto com ele. Mantidas as atuais políticas de submissão dos países "dependentes", manter-se-á esta relação simbiótica onde países como o Brasil tornam-se, ao contrário do que se imagina, verdadeiros exportadores de capital, subsidiando as irresponsabilidades macroeconômicas dos EUA. No mundo real, para que o dinheiro tenha valor efetivo, teoricamente, precisa-se de riquezas energéticas aliadas a trabalho e tecnologia. Apenas em decorrência da fantasia do valor-dólar, os nossos compromissos e nossas políticas econômicas, desconsiderando as nossas vantagens comparativas óbvias em termos energéticos, são direcionadas para se garantir fluxo de capital para o cassino internacional.

Quer dizer que nossas riquezas financiam a falácia do dólar e a própria sobrevivência da economia norte-americana? Não há uma relação simétrica e complementar entre centro-periferia?

Said B. Dib: Não. Os EUA estão atuando como o "consumidor de última instância", ou seja, estão obtendo um empréstimo maciço e sem juros do resto do mundo sem o compromisso de honrar estes empréstimos. Há uma total inversão da realidade. É pura ideologia. Na verdade, o que acontece é que os países periféricos - que possuem (mas não controlam totalmente) garantias energéticas reais para o padrão-dólar, inclusive e principalmente o petróleo -, estão "importando" as dificuldades da economia americana, estão assumindo problemas não da periferia, mas dos centros financeiros, pois não possuem soberania sobre as decisões macroeconômicas. Por isso, os americanos suportam um situação insólita em que a sua dívida externa assume cifra gigantesca: US$ 2 trilhões. Essa vulnerabilidade provém dos déficits na conta corrente com o exterior, da ordem de US$ 450 bilhões por ano. Trata-se, como ensina Adriano Benayon, "de dependência análoga à do Brasil e à da Argentina, pois quanto mais o balanço de pagamentos se equilibra por meio de investimentos diretos estrangeiros, mais crescem os fatores do desequilíbrio". Porém, não são eles que são obrigados a pagar a conta. Em decorrência das ridículas medidas de submissão de países como o nosso, com uma elite covarde e apátrida, discursos sobre Banco Central independente, superávit fiscal e coisas do gênero, somos nós, detentores de riquezas efetivas, que pagamos o descontrole financeiro ianque. O ingresso de capitais estrangeiros nos EUA subiu de US$ 142 bilhões em 1990 para US$ 466 bilhões em 1996. Em 2000 atingiu 1,24 trilhão, em grande parte decorrentes da festa exploratória das transnacionais sediadas nos países periféricos. Mas os norte-americanos, diferentes de outros países como o Brasil, repito, não são obrigados a manter suas contas controladas pelo FMI e, a continuar o atual sistema financeiro mundial, jamais serão obrigados a resgatar estas dividas.

Então, partindo deste seu raciocínio, a idéia de que necessitamos de capital estrangeiro é mesmo um mito?

Said B. Dib: Perfeito. Hoje, efetivamente, somos exportadores de capital, ao contrário do que a mídia amestrada diz. O problema não está em ser o investimento estrangeiro produtivo ou não, como o governo petista e seus intelectuais andam propalando. Este é um falso problema. Na verdade, os investimentos diretos no sistema produtivo são ainda mais perversos para nossa economia, pois criam uma dependência estrutural de dinheiro irreal (o dólar), sendo que quase tudo que é "investido" aqui acaba remetido para fora através de vários mecanismos conhecidos, como as descontroladas remessas de lucro, contas CC-5, isenções fiscais, privatizações com preços irreais, subsídios doados pelo BNDES, direitos sobre marcas e patentes, etc.. Por isso, as transnacionais instaladas no Brasil remeteram para suas matrizes no exterior, principalmente nos Estados Unidos, US$ 24 bilhões em 2002, batendo o recorde dos últimos nove anos. Os dados foram levantados pelo Banco Central. A sangria de dinheiro brasileiro para o exterior foi uma marca registrada no governo de Fernando Henrique, mas os escandalosos resultados de 2002 conseguiram ultrapassar, e muito, o antigo recorde, que havia sido registrado em 1999, com remessa para o exterior de US$ 14,7 bilhões. O aumento da sangria se intensificou depois que FH entregou estatais brasileiras para os cartéis estrangeiros. A Eletropaulo, por exemplo, desde que foi doada para a norte-americana AES em 1998 impôs reajustes nas contas de luz de empresas e residências superiores a 300%, sem falar nas taxas e tarifas extras inventadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica. O resultado para as 4,6 milhões de unidades consumidoras alocadas em 24 municípios de São Paulo são contas imorais e uma remessa de lucro para a matriz americana de US$ 280 milhões só no ano de 2002.

Tudo bem, mas como o petróleo se encaixa nesta situação toda? Explique melhor.

Said B. Dib: O petróleo - e os combustíveis fósseis em geral - é a matriz energética do mundo, principalmente da economia dos países ditos do Primeiro Mundo. Portanto, está na base de suas economias, inclusive de seus sistemas financeiros. Quando não se tem petróleo, há que comprá-lo. Até recentemente todos os países da Opep concordavam em vender o seu petróleo apenas por dólares. Enquanto isto acontecia, era improvável que o euro se tornasse a principal divisa de reserva: não há interesse em acumular euros se todas as vezes em que for preciso comprar petróleo for necessário trocá-los por dólares. Esta disposição também significava que os EUA, efetivamente, controlavam todo o mercado mundial do petróleo: só se pode comprar petróleo se se tiver dólares, e só um país tem o direito de imprimir dólares - os EUA. Se, por outro lado, a Opep decidisse aceitar somente euros pelo seu petróleo (assumindo por um momento que lhe fosse permitida tomar esta decisão), então a dominação econômica americana estaria ultrapassada. Não só a Europa não necessitaria mais de tantos dólares, como o Japão, que importa 80% do seu petróleo do Oriente Médio, pensaria que seria sábio converter uma grande porção dos seus ativos em dólares em ativos em euros (o Japão é o maior subsidiador dos EUA porque possui muitos investimentos em dólar). Os EUA, por outro lado, sendo o maior importador do mundo de petróleo teria, para manter um excedente comercial, de adquirir euros. A conversão do déficit comercial atual para o excedente comercial teria de ser alcançada num momento em que os preços das suas propriedades - e das ações no mercado - estariam em colapso e os seus abastecimentos internos de petróleo e gás estariam contraindo. Seria uma penosa conversão, destruidora para a manutenção da atual hegemonia ianque.

É por este motivo que o senhor afirmou, em recente artigo, que "Saddan Hussein selou seu destino em 2000, quando adotou o padrão-euro"?

Said B. Dib: Esta não é uma análise minha. Vem sendo dita por especialistas sem grandes espaços na grande mídia, como W. Clark, Cóilín Nunan e outros. Mas o importante é saber que os argumentos puramente econômicos para a Opep converter-se ao euro, pelo menos por algum tempo, parecem muito fortes. A Zona euro não mantém um enorme déficit comercial nem está pesadamente endividada para como o resto do mundo como os EUA - e as taxas de juro na Zona euro também são significativamente mais razoáveis.

É esta a razão pela qual a França e a Alemanha estão sendo tão enfáticas na posição contrária à guerra?

Said B. Dib: Perfeito. Como dizia, a Zona euro tem uma fatia maior do que os EUA no comércio mundial e é o principal parceiro comercial do Oriente Médio. E quase tudo o que se possa comprar com dólares pode-se comprar também com euros - exceto, naturalmente, o petróleo (por enquanto). É ai que está a principal razão da resistência francesa e alemã à guerra. Por outro lado, temos também uma questão diretamente vinculada à exploração das reservas: o gigante petrolífero francês Total-Fina-Elf tem a maior posição no Iraque, com direitos exclusivos de negociar para desenvolver campos nas regiões de Majnoon e Bin Umar. Os maiores negócios que estão sendo negociados por Saddan Hussein, vão também para a ENI da Itália e um consórcio russo dirigido pela LukOil. Se as forças armadas dos EUA entrarem e estabelecerem um governo fantoche no Iraque, tudo isto ficará em causa, daí, obviamente, a atual posição de Chirac de tentar protelar a guerra.

E qual a posição da Opep nesta história toda? Ela sairia ganhando ou perdendo com a passagem do dólar para o euro?

Said B. Dib: Se a Opep fosse converter os seus ativos em dólares para ativos em euros - e a seguir exigisse o pagamento pelo petróleo em euros -, seus ativos imediatamente aumentariam de valor, pois os países importadores de petróleo também seriam forçados a converter parte dos seus ativos, levando os preços para cima. Para a Opep, apoiar o euro seria uma grande jogada estratégica. Eles poderiam, então, em algum momento posterior, mover-se para alguma outra divisa, talvez novamente para o dólar, e obter mais uma vez enormes lucros. Ou seja, a manipulação financeira, tutelada pelos EUA via dólar (moeda decadente e falsa), abriria espaço para a especulação daqueles países que possuem a base da economia real: o petróleo e outras fontes energéticas.

Como tudo isso se repercute na economia global?

Said B. Dib: O Federal Reserve (Banco Central americano) não poderia mais imprimir dinheiro para reinflar a bolha, como já vem fazendo desesperada e sintomaticamente. Isto porque, sem montes de estrangeiros ávidos e desejosos de absorve-los, haveria uma inflação séria a qual, por sua vez, tornaria os estrangeiros ainda mais relutantes em possuírem as divisas americanas - e assim agravar-se-ia a crise. Só para que as pessoas entendam de uma forma didática, tente imaginar o seguinte: em qualquer casa de câmbio do mundo você encontra dólar para trocar pelo dinheiro dos vários países. Imagine se todos estes dólares fossem repatriados para o território dos EUA, como acontece com todas as demais moedas. Assim como um banco que, prestes a falir, tivesse que honrar seus compromissos com todos os acionistas e clientes, mas que não tivesse caixa para tanto, o caos se instauraria. Seria uma hiperinflação inimaginável, um déficit público ciclópico e os EUA virariam uma imensa Argentina. É o que está em jogo. Há no entanto um grande obstáculo para que isto aconteça e uma grande esperança para os EUA: o petróleo. O petróleo não é apenas de longe a mais importante mercadoria (commodity) comercializada internacionalmente, é o sangue de todas as modernas economias industrializadas, que apostaram todo seu desenvolvimento num modelo sujo ecologicamente, não-renovável e limitado. Manter a compra e venda do petróleo sob o padrão dólar representa a sobrevivência da ilusão financeira norte-americana, representa a preservação - ou protelação - do domínio dos EUA sobre o resto do mundo, pelo menos até que este país obtenha todas as reservas do planeta, inclusive as venezuelanas e as brasileiras. Eles esperam ganhar tempo para assentarem sua hegemonia em novos parâmetros. Para eles, portanto, não basta apenas o controle sobre as reservas e os preços no mercado mundial, como a imprensa vem dizendo, mas a manutenção da negociação do mercado de petróleo atrelada ao sistema falacioso do dólar e seus instrumentos institucionais, como o FMI, a OMC, etc.. É por esta razão que o Império tirou a máscara. Está desesperado e não se preocupa mais em mostrar-se às claras em suas ameaças. Os eufemismos acabaram e a realidade é cruelmente revelada.

Um país da Opep que recentemente teve atritos com o governo dos EUA é a Venezuela. Chavez também manifestou vontade em apoiar o padrão euro ou outra moeda que não o dólar?

Said B. Dib: A Venezuela também tem mostrado "deslealdade" para com o dólar. Sob o governo de Hugo Chavez, a Venezuela estabeleceu acordos de permuta para comercializar o seu petróleo com 12 países latino-americanos, inclusive Cuba. Isto significa que os EUA estão perdendo o seu subsídio habitual e explica o desejo americano de derrubar Chavez. Na cimeira da OPEP em Setembro de 2000, Chavez leu aos chefes de Estado da Opep o relatório do "Seminário internacional sobre o futuro da energia", uma conferência convocada por ele naquele ano para examinar tanto a futura oferta de energias fósseis como de renováveis. Uma das duas recomendações principais do relatório era que a 'Opep aproveitasse a permuta eletrônica de alta tecnologia - e as trocas bilaterais do seu petróleo - com os seus clientes dos países em desenvolvimento, isto é, a Opep deveria evitar a utilização tanto do dólar como do euro para muitas transações. Em Abril de 2002 um alto representante da Opep pronunciou um discurso público na Espanha durante a presidência espanhola da UE no qual tornou claro que o cartel petrolífero ainda não tinha planos para tornar o petróleo disponível por euros. Naquele momento havia apenas uma possibilidade não descartada e que poderia trazer benefício econômico a muitos países produtores de petróleo. Como a produção de petróleo agora está em declínio na maior parte dos países produtores, a importância dos grandes produtores remanescentes, particularmente aqueles do Oriente Médio, está destinada a tornar-se cada vez maior nos próximos anos. O Iraque, cuja produção de petróleo foi severamente reduzida pelas sanções, é um dos poucos países que podem ajudar a acalmar esta escassez ameaçadora de petróleo. A Europa, como a maior parte do resto do mundo, quer ver uma resolução pacífica das atuais tensões americano-iraquianas e um levantamento gradual das sanções - isto certamente serviria melhor aos seus interesses. Mas como o petróleo do Iraque está denominado em euros, permitir que isto se tornasse generalizado neste momento poderia aliviar o estrangulamento do dólar e possivelmente fazer mais dano do que bem para a saúde da economia americana.

E no Brasil? Como ficamos diante deste quadro de transição entre poderes hegemônicos mundiais?

Said B. Dib: Se mantivermos os pressupostos suicidas da política econômica atual, estaremos em breve na ruína total. Mas se o Presidente Lula tiver coragem, se souber aproveitar-se das mudanças internacionais, como fez Vargas na Segunda Guerra, poderemos ter esperanças. Em primeiro lugar porque os famigerados investimentos diretos estrangeiros nos deixarão em paz, diminuindo nossa dependência e aumentando as possibilidades de andarmos com nossos próprios pés. Nãoé por nada que, durante as duas Guerras Mundiais - aí incluindo a Grande Depressão dos Anos 30 - foi o período em que o Pais mais cresceu, num ritmo de aproximadamente 12% ao ano. Foram, principalmente, nos governos Venceslau Brás e Vargas, justamente quando as potências imperialistas estavam em guerra e nos deixaram em paz.

Quer dizer que o governo Lula está no caminho errado?

Said B. Dib: Lula foi eleito com aproximadamente 80% de aprovação, não podemos nos esquecer disso, pois devemos contar não apenas os cinqüenta e poucos por cento dados a ele, mas todos os votos que não foram para o tucanóide enxacoco Serra. Foram 80% de repúdio ao modelo atual. Por isso, Lula não deveria ter o direito de errar, não poderia desperdiçar a oportunidade impar de remover o modelo dependente pela raiz. Ele foi eleito para isso, não para aprofundar o que o povo quis varrido do País. Embora a mídia adestrada e comprada tenha tentado mostrar a saída FHC como honrosa e até vitoriosa, não há como negar que o tucano foi rechaçado pelos brasileiros, abominado, menosprezado, derrotado. O seu desgoverno apátrida e canalha foi tão ruim, tão repudiado pelo povo, que fez até o milagre de anti-petistas históricos votarem no Lula. Se Lula tiver virtú, no sentido maquiavélico, ou seja, se souber aproveitar o momento histórico surpreendentemente favorável (Fortuna?) - ter enfrentado uma eleição depois de oito anos da desgraça nacional tucana e estar passando por uma conjuntura de crise mundial do sistema financeiro baseado no dólar - , poderá evitar problemas de governabilidade. Mas, infelizmente, nenhum assessor parece esclarecer o Presidente Lula acerca do que está ocorrendo no plano internacional. Ele não deveria estar com medo de cumprir o prometido. Pelo contrário, deveria dizer à nação que a iminência da guerra exige medidas voltadas para garantir o mercado interno, para resgatar nossa auto-suficiência, para controlar a sangria de nossos capitais, enfim, para fazer o Brasil crescer com os recursos que temos de sobra, mas que vêm alimentando as irresponsabilidades do Império em decadência. Se invertermos a lógica da política econômica, não teremos problemas. Pelo contrário, estaremos em ótimas vantagens enquanto o mundo se afunda, pois somos um pais continental, com recursos próprios, pessoas competentes, um mercado interno enorme mas, principalmente, com auto-suficiência na ordem de 80% em petróleo.

E como ficam, na sua opinião, as necessárias reformas que serão objeto de debate na atual legislatura? Elas serão importantes para que possamos enfrentar a crise mundial?

Said B. Dib: Quando ouço o Lula falar da necessidade de reformas estruturais e começa a enumerar o "projeto" tucano de "governo", fico arrepiado. Depois de tudo que disse dá para entender que falar de reforma estrutural seria falar em abolir pela raiz tudo que aí está, a começar com esta besteira neurótica em querer atrair dinheiro podre para País. O que os petistas estão chamando de reformas estruturais não passam de um aprofundamento imbecil das medidas suicidas que nos atolaram numa fria chamada "dependência estrutural do capital falido" norte-americano. É apostar no abismo, uma irresponsabilidade absurda. Mostra que os petistas nunca souberam de coisa nenhuma de como funciona o sistema de poder mundial no qual FHCatástrofe nos meteu. Além de levar as estatais de presente de FH, as transnacionais contaram nos 8 anos de desgoverno tucano com inúmeros benefícios, como isenção de impostos e terrenos subsidiados para instalação de suas filiais. O lucro fácil advindo da concorrência desleal com empresas nacionais foi direto para os cofres das matrizes. Ao mesmo tempo que tal sangria acontece, aumenta o terrorismo petista contra o funcionalismo, uma coisa desumana, pois estudo da Anfip demonstrou que o suposto "déficit" propalado por FHC (e agora por Lula) foi uma fraude: o que houve foi ilegal e criminoso confisco dos recursos da Seguridade Social para pagar juros estratosféricos aos especuladores e alimentar o vampirismo internacional dos EUA. A Previdência Pública teve um superávit de R$ 36 bilhões em 2002, revela estudo da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social (Anfip). Intitulado "Sistema de Seguridade Social brasileiro é superavitário", o documento divulgado pela entidade denuncia que, ao contrário do que dizia a quadrilha de FH, a Seguridade Social (Previdência, Assistência e Saúde) tem dinheiro de sobra para pagar aos aposentados e pensionistas. O documento, com mais de 60 páginas, demonstrou que, ao invés do tão anunciado "déficit" da Previdência Pública - alardeado para tentar "desmontar o sistema público de Seguridade Social no Brasil" -, já em 2001, a Previdência fechou com um fabuloso superávit de R$ 31,5 bilhões. Os fiscais apresentaram todos os números de arrecadação, baseados em dados da própria Receita Federal, ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Se ele não tomar providências e não acabar com a tortura de nossos trabalhadores, estará provado que ser presidente do Brasil, hoje, não é nem mais nem menos importante politicamente do que o título de Miss Brasil.

 

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