Pelos direitos humanos

A jovem promotora ensina que essa é uma luta árdua, mas uma obrigação de todos - principalmente em um país que vive ainda uma "democracria adolescente"

Por André Deak e João Rodrigues*
EmCrise – 12/10/2002

"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação aos outros com espírito de fraternidade", diz o primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos humanos. Mas, passados mais de 50 anos, ainda estamos distantes de isso se tornar realidade. Traduzir a letra da declaração na prática é a luta em que Flávia Piovesan, de 33 anos, se empenha. Formada em Direito 1990 pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi a primeira "presidenta" do Centro Acadêmico 22 de agosto. Após o mestrado na área de direito constitucional, passou um ano em Harvard, nos Estados Unidos, preparando seu doutorado que foi defendido no Brasil em 1996. Leciona Direitos Humanos e Direito Constitucional na PUC: "Tivemos o pioneirismo de ser a primeira faculdade do país a inserir Direitos Humanos como disciplina de graduação, em 1994, e depois na pós-graduação, em 2000." Além disso, integra o movimento de direitos humanos e o movimento em defesa das mulheres, em várias entidades. Fez parte do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Humana desde 2000 até agosto último (pediu renúncia após a não-intervenção no Espírito Santo), e participa do Centro de Justiça Global. Procuradora do Estado desde 1991, coordenou ali o grupo de direitos humanos de 1996 a 2000.

EmCrise: Como teve início a sua luta pelos direitos humanos?
Flávia Piovesan:
Prestei vestibular para três áreas - medicina, jornalismo e direito - e comecei a cursar direito junto com jornalismo. Percebi que a área jurídica era a que mais me satisfazia, porque sempre vi no Direito uma potencialidade para a mudança social. O Brasil é um dos quatro países do mundo com maior concentração de renda, um dos mais injustos do planeta. Possui um padrão de violência equiparável ou até acima de países que enfrentam conflitos bélicos. É o 74º colocado no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Estou convencida que as mudanças são necessárias e que é fundamental desvendar o potencial emancipatório que o Direito pode ter - e assim contribuir para a mudança social. É óbvio que o Direito não é a única via para se fazer isso, mas tem seu papel. Talvez não como protagonista, mas com uma participação efetiva.

Como é feita a militância como professora?
Piovesan É mais um ambiente acadêmico, onde se pode questionar as concepções de direitos humanos e as correntes que existem. Acabo de sair de um debate sobre se os direitos humanos são universais ou culturalmente relativos. Essa é uma discussão muito rica que nós trouxemos para dentro da sala de aula a partir do tema "mutilação genital feminina". Um grupo defendia o relativismo cultural, dizendo que cada cultura elabora seu próprio código, e outro dizia que não, que há um valor intrínseco à pessoa humana que não é determinado pelo meio. Mas há graduações também. Na educação para os direitos humanos você lida com operadores do Direito: na minha sala estudam três juízes, procuradores da república, promotores, militantes... Então de alguma forma eles saem com um acúmulo diferente e podem utilizar sua atuação pautada nos direitos humanos, reconhecendo que essa causa é relevante, que precisamos conhecer os instrumentos, utilizar e potencializar seu uso.

E fora da sala de aula?
Piovesan Trabalho com publicações, livros, campanhas pedagógicas e até mesmo projetos de lei. A produção de relatórios também é fundamental. Através deles é que se pode diagnosticar a realidade e ter uma atuação adequada no campo dos direitos humanos. Entidades maiores, como as que vi em Boston, nos EUA, nos mostram o quanto é importante um trabalho de pesquisa em direitos humanos. Questionar a imunidade parlamentar também é importante. Já no Movimento de Mulheres estamos preparando uma ação enfocando que há disposições do Código Penal que são antagônicas ao princípio fundamental de igualdade entre homens e mulheres. Não é só "mulher honesta", como está escrito, que vai ter direito a isso ou aquilo. Tem que ser qualquer mulher. Também estou coordenando publicações sobre direitos econômicos, sociais e culturais, decisões judiciais que tiveram êxito nessa área, porque acreditamos que uma das maneiras de potencializar o uso da Justiça é dizer "olha, não existe apenas a Justiça que nega direitos, existe também a Justiça que delega". Isso é estimulante. Na procuradoria, o trabalho é pautado em duas linhas: educação em direitos humanos e litigância: recebemos denúncias e propomos as sansões cabíveis. Por exemplo, o caso de uma campanha de desarmamento da população em que o cartaz trazia a foto de um negro armado. Por que um negro? Só negro é bandido? A Justiça acabou ordenando a remoção dos out-doors, entendendo que de fato eram discriminatórios. Do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Humana, pedi demissão. Fui uma das relatoras no caso da intervenção federal no Espírito Santo, e há, sim, um padrão sistemático de violação dos direitos humanos naquele Estado. Fiquei constrangida em permanecer no cargo - afinal, se o ministro saiu, acho que eu não deveria ficar.

Como está a relação entre o Judiciário e os direitos humanos?
Piovesan Com a democratização do Brasil desde de 1985, celebrada juridicamente com a constituição de 1988, verificou-se que a pauta dos direitos humanos foi sendo incorporada por várias instituições. Por exemplo, o legislativo hoje tem comissões de direitos humanos e o executivo também fez uma interlocução com a sociedade civil, com as secretarias de Justiça e Cidadania, por exemplo. No caso do Judiciário não houve a incorporação dessa pauta. Os avanços que temos resultam muito mais da atuação de juízes e juízas vocacionadas para essa atuação ou associações como os Juízes para a Democracia, que têm uma política institucional clara de que estamos em uma democracia e devemos avaliar os juízes, verificar qual é nossa função social, que normas são essas, etc. Falta uma incorporação da pauta dos direitos humanos de uma forma mais densa. Não pode depender puramente de iniciativas isoladas de algumas pessoas.

O que falta para isso?
Piovesan Há uma baixa provocação do Judiciário. Há pesquisas que mostram, em especial uma da doutora Maria Teresa Sadek, publicada ano passado, que diz que dos conflitos sociais no Brasil, 30% apenas são judicializados. Onde está esse litígio? Isso tem a ver com o Índice de Desenvolvimento Humano: regiões com IDH maior, como as regiões sul e sudeste, tem maior poder de litigância, enquanto regiões com IDH menor tem menor poder de litigância. Há uma distribuição desigual de litigâncias. Segunda pergunta: que litigância é essa? Está pautada em direitos ou são de pessoas que usam a lentidão do Judiciário como uma vantagem pessoal? É aquele raciocínio: "não quero pagar essa dívida, é muito melhor jogar na Justiça". Um raciocínio que é feito até pelo Poder Público. Então, se fizermos esse recorte, dentro dos 30% das pessoas que buscam a Justiça, muitos ainda não estão nela para buscar seus direitos, mas para aproveitarem-se de suas falhas, ganhar tempo com essa lentidão. Temos que sensibilizar os atores da Justiça - promotores, Ministério Público, advogados, todos. E há outro problema também, e aí eu faço uma autocrítica. O setor da Justiça é, por excelência, conservador. As pessoas que lidam com o Direito são pessoas que vêem nele um sistema de contenção e conservação, e não de mudanças. Lógico que há exceções. Tem que ter um pouco o discurso Antígona, contra a corrente, de contestação, de romper com o discurso conservador.

E o povo brasileiro, também é conservador?
Piovesan Saiu recentemente uma pesquisa da The Economist que fazia a seguinte pergunta em 17 países da América Latina: você acha a democracia o melhor sistema de governo? Os maiores índices de respostas positivas foram para o Uruguai, com 78%, Costa Rica, com 75%, e Venezuela, que ampliou de 60 para 75% depois do golpe contra o Cháves - o que foi ótimo, uma lição para eles que a democracia vale a pena. Dos 17 países, o Brasil está em último. Só 38% acreditam na democracia. Ainda temos um ranço autoritário, uma cultura que tem como desafio consolidar a ótica democrática, os direitos humanos. Eu falo para os meus alunos: essa constituição é democrática, veio para romper com a ditadura. Veio com uma grande carga simbólica. E é bom lembrar, são apenas 13 anos de democracia mesmo. É muito recente. Somos uma democracia adolescente no campo político. É muito frágil, basta ver a opinião pública.

EmCrise E como pautar os direitos humanos com esses diagnósticos?
Piovesan É uma pauta inovadora, que quebra tabus, que lança novos paradigmas. E é uma pauta que demanda muita persistência, porque nós estamos no chão ainda. Quer lutar por direitos humanos? O resultado não vai sair hoje às três horas da tarde, nem amanhã, nem depois de amanhã. Certamente vai ocorrer depois que não estivermos mais aqui. Mas vale a pena. Justifica um pouco até do ponto de vista existencial. Mas não dá para ser imediatista - o legado é muito pesado. Como é que vai romper com 20 anos de ditadura do dia para a noite? Uma cultura de direitos humanos, democrática, está sendo fomentada em diversas instituições, e a Jurídica é apenas uma delas. Começam a surgir novos atores sociais que vão ajudar a mapear uma nova riqueza no movimento dos direitos humanos. É a reinserção da sociedade civil no pós-democratização: o surgimento do movimento de mulheres, indígenas, portadores de deficiências... Eu sempre lembro daquela parábola do guerreiro que tenta quebrar uma pedra em duas metades: dá 99 machadadas, nada acontece; na centésima, quebra. Ele sabe que não foi só um, mas 100 golpes que quebraram a pedra. O raciocínio deve ser esse: temos que acreditar, persistir, instigar, nutrir o sentimento de indignação e esperança. E sermos menos fatalistas, dizer menos que é assim, sempre foi e sempre será. Nada dura para sempre. Podemos desconstruir e construir o que quisermos.

Como lidar com esse imediatismo e esse egoísmo que aumentou ainda mais na década passada?
Piovesan A única solução é a educação. Além de ser um direito fundamental, ela é pressuposto para o exercício dos demais direitos. Uma pessoa que não teve acesso à educação não terá acesso aos outros direitos.

Mas vemos graves crimes contra os direitos humanos serem cometidos por pessoas das mais altas classes sociais - basta lembrar o caso do índio Galdino...
Piovesan Aí vem a questão: o Estado de Direito. Aqui, lamentavelmente, vivemos no país do "você sabe com quem está falando?". Ainda é uma cultura autoritária. Você vê o caso do Ministro dos Transportes que parou o carro no lugar proibido e foi multado e aí diz "quem você pensa que é?". Outro dia eu estava numa fila na cantina, atrás dos alunos. Aí veio uma mulher e entrou na frente: "Sou professora", ela disse. "Eu também sou", falei. "Ah, você é uma antipática", ela me disse. Mas não é isso. Estou apenas tentando cumprir o princípio republicano democrático e igualitário. A questão é essa. Ainda falta enraizar, amadurecer essa cultura. Em relação aos juízes, falta um papel mais ativo, mais pró-ativo em relação aos direitos humanos, e não apenas reativo. Fizemos um levantamento sobre racismo, houve apenas 12 condenações em todo o país desde 1989. De um lado, baixa divulgação, de outro, pouca sensibilidade. Mas é preciso também uma maior provocação do Judiciário. Muitos movimentos centraram a atuação no Legislativo, para mudar a constituição. O movimento negro também fez isso. Nós temos também, paralelamente, que obter ganhos na Justiça, lidar com casos paradigmáticos, exemplares, que possam criar jurisprudências inovadoras. Tentar um encaminhamento da mesma maneira que fizeram os portadores de HIV, até porque eles não podiam esperar a criação de uma lei, então entravam com processos na Justiça. Depois, muitos ganhos de causa permitiram que isso fosse universalizado por lei. O caminho dos direitos humanos é duplo: no Legislativo e no Judiciário.

EmCrise Quando ocorrem sentenças como as do caso de Eldorado dos Carajás, não há um retrocesso?
Piovesan Sem dúvida, é uma grande frustração. Quem defende os direitos humanos defende também o combate à impunidade. É preciso que a lei seja geral e irrestrita. É preciso investigar, processar e punir. É, de novo, a cultura autoritária. No Brasil é muito comum ainda o lema "para os amigos, tudo, para os inimigos, a lei". É o máximo da aberração de qualquer cultura que tenha um Estado de Direito, que é aquele que não distingue classe social.

E como lidar com essa corrente que prega "direitos humanos apenas para os humanos que são direitos"?
Piovesan A primeira aula de pós-graduação que dou tem o título "direitos humanos: conceitos e preconceitos". É muito mais fácil acreditar que o problema está no outro. Quem é o outro? O preso, o migrante, o nordestino, o negro... Isso gera uma cultura de intolerância que entende que eles são inferiores ou menos sujeitos aos direitos do que nós. Não podemos seguir aquela linha malthusiana que diz "se há pobreza, vamos terminar com a pobreza matando os pobres". É aquele discurso: "Você não defende pena de morte porque nunca entrou um assaltante na sua casa". Sempre respondo que o Código Penal me autoriza à legítima defesa. Não sou hipócrita. Vou responder com emoção, sim. Mas não podemos transpor essa lógica para a lógica do Estado, que deve ser racional. A reação a isso é o discurso da razão. Direitos humanos são os direitos à saúde, à educação... Trazer um pouco para esse lado mais amplo, sempre trabalhando a ótica da tolerância, a inclusão. Vejo que essa corrente também é um pouco uma reação ao 11 de setembro: as pessoas se vêem em uma situação de insegurança, lógico, guardadas as devidas proporções em relação ao Brasil, mas agora as populações tendem a responder pelo emocional.

EmCrise É possível então perceber um alastramento da posição norte-americana pós-11 setembro, de perda da liberdade civil?
Piovesan O que me apavora no 11 de setembro, além dessas medidas restritivas em prol da segurança máxima, onde julgamentos não são mais públicos, não há mais direito à clientes terem contatos com advogados, tribunais imediatos, tortura admitida - e isso tem um impacto no mundo todo - é a globalização do terror. É um efeito muito negativo. Antes nós utilizávamos casos da Arábia Saudita, do Vietnam, mas agora utilizamos casos dos Estados Unidos como exemplos didáticos de atentados às liberdades civis, aos direitos humanos. Levamos décadas para chegar à Era do Direito. Agora o desafio contemporâneo é como manter a Era do Direito em tempos de Terror.

Como a senhora vê o Tribunal Penal Internacional?
Piovesan Foi um avanço da civilização. É um privilégio testemunhar o surgimento de algo assim. O que havia antes eram tribunais Ad Hoc, mas finalmente alcançamos uma Justiça Internacional, que não é uma Justiça de vencedores a julgar vencidos, já que mesmo quem redigiu o estatuto a ele se submete. Felizmente o Brasil está nisso. E, lamentavelmente, mais uma vez a posição dos EUA é contrária. Estão tentando tecer acordos bilaterais com alguns Estados - e já conseguiram isso com a Romênia - nos seguintes termos: se quiserem ajuda financeira, o acordo é que não extraditem, que não encaminhem para o TPI nossos americanos que estiverem aqui e forem acusados de abuso de força. Felizmente, a União Européia disse que não irá aceitar isso. Como há 200 mil norte-americanos espalhados pelo mundo, se algum deles usar indevidamente a força em território de alcance do TPI, poderá ir à julgamento. Será o início do fim da impunidade contra genocídios, crimes contra a humanidade, os piores crimes. E é bom que se diga que a Justiça Internacional tem que respeitar a Justiça local - ela é complementar e subsidiária. Só vai atuar quando as instituições nacionais se omitirem ou se mostrarem falhas.

As empresas, a iniciativa privada, tem algum papel a cumprir também?
Piovesan Acabei de chegar dos EUA e lá se discute muito o papel das multinacionais em relação aos direitos humanos. Até porque das 100 maiores economias mundiais, incluindo empresas e países, 51 são de multinacionais. Elas têm faturamentos anuais maiores do que PIBs de muitos países. Se elas foram as grandes beneficiárias do processo de globalização, elas têm uma responsabilidade social muito grande.

O que a senhora acha da Justiça Militar?
Piovesan Eu defendo a abolição da Justiça Militar. Se ela existe, a única justificativa é que sua competência seja restrita a questões internas - ou seja, se os militares têm um código próprio, rígido poder disciplinar, hierarquia, sua Justiça deve lidar apenas com crimes funcionais, infrações. É por isso que vejo com ótimos olhos o projeto de lei do deputado Hélio Bicudo (PT-SP), que finalmente transfere para a Justiça Comum os crimes praticados por militares. Mas tinha que ir mais além, porque só transfere os crimes dolosos para a Justiça Comum. Qualquer crime deveria ser transferido.

O que deveria ser feito em uma reforma do Judiciário?
Piovesan Um grande ponto que tem sido pouco analisado é o acesso à Justiça. Nem tanto a qualidade da prestação jurisdicional, mas o acesso. Na América Latina como um todo, as reformas têm sido pautadas mais no campo administrativo ou econômico do que uma reforma voltada à defesa dos direitos e da cidadania. O foco deveria ser esse. Pensar de que maneira podemos aumentar esses canais e trazer a Justiça mais próxima é que é o verdadeiro debate.

Quem escolhe o caminho dos direitos humanos deve procurar fazer o quê?
Piovesan Esse caminho não é o reduto privilegiado de alguns. Não é assim: só vou atuar se me inscrever em uma ONG. Não. Direitos humanos é atitude, ação perante a vida e o mundo. O importante é pautar-se por valores de igualdade e liberdade, entre outros, e aí você pode ser um juiz ou uma juíza, ter qualquer função, e suas decisões terão sempre por fim a salvaguarda desses valores. E é possível atuar em várias frentes. No Direito brasileiro, a constituição de 1988 é uma ferramenta muito importante. Na sociedade, o fundamental é a denúncia. Existe uma frase do movimento negro que diz: "O silêncio é cúmplice da violência". Temos que provocar, acreditar. Se isso não for feito, nada vai mudar. E pensar que aquele caso que ocorreu na Febem, na prisão ou na rua, muitas vezes reproduz um padrão de violação - e então lutar por aquele caso significa lutar por tantos outros. É fácil? Lógico que não. Mas merece muito a nossa dedicação.

*Publicado originalmente na revista Diálogos&Debates em setembro de 2002.

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