O silêncio
é o êxito da violência
Socióloga espanhola analisa
como a indiferença e o silencio dos omissos contribuem com as atrocidades
cometidas pela humanidade
Por Giovanna
Modé, de Barcelona
EmCrise - 02/08/2002
Qual é a culpa
daqueles que não fazem nada para evitar um conflito? A pergunta
instigou a socióloga espanhola Beatriz Martínez de Murguía.
Depois de alguns anos estudando a questão, aplicou o debate
ao contexto do Holocausto e o resultado foi o livro Descifrando
Cenizas, Persecucion y Indiferencia (Paidós Amateurs,
125 páginas), lançado há dois meses na Espanha.
Nele, o assunto é o papel daqueles que não eram nazistas
nem militantes do partido ou simpatizantes. Simplesmente pessoas que
antes eram vizinhos ou amigos dos judeus e, diante da perseguição
política, se omitiram. São os indiferentes. "Se
fala muito nos perseguidores e nos que os apoiavam, mas nessa parcela
se fala muito pouco", diz a autora. |
Capa do livro
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No livro, longe de tentar mostrar a culpa
moral, ela se preocupa em evidenciar a culpa real. Em 1933, por exemplo,
sabe-se que 1% dos perseguidos foram salvos por alguns poucos alemães
que tomaram uma atitude, como fornecer comida ou facilitar o esconderijo.
Para ela, a lógica é a mesma para outros conflitos de perseguição
política, em que uma massa silenciosa é essencial para o
êxito da violência.
EmCrise:
Quem são exatamente as pessoas de quem a senhora está falando?
Beatriz Martínez de Murguía: Vejamos um exemplo.
Milena Jesenská, uma das vítimas do campo de concentração
de Ravensbrück, que por sinal era amiga do escritor Franz Kafka,
contou em suas memórias o caso do médico judeu no povoado
de Asch, norte da Checoslováquia, onde vivia há 20 anos.
Não havia uma só pessoa na região que não
havia sido curada por ele pelo menos uma vez na vida. Bem, em 1933, essas
mesmas pessoas, seus pacientes, começaram a evitá-lo. Abaixavam
os olhos para não precisar cumprimentá-lo, atravessavam
a rua ou desviavam. Eram pessoas de seu convívio. Refiro-me a pessoas
assim. E alguns deles assumiram anos depois que poderiam ter feito algo.
As razões para a escolha desse grupo?
São muitas. Talvez a mais importante seja que pouca gente até
hoje tenha dado a relevância merecida a ele. Numa situação
de conflito extremo, de perseguição e extermínio,
todas as pessoas desempenham um papel. E é fundamental para o êxito
dos perseguidores violentos que haja o maior número de indiferentes
possível.
Certamente em 12 anos de nazismo houve momentos distintos. Quando
essa indiferença esteve mais evidente?
Eu não posso responder porque não creio numa culpa coletiva
dos alemães. Acredito, sim, na culpa de cada indivíduo.
O problema maior foi terem depreciado as intenções genocidas
do nazismo.
Indiferença
não é o mesmo que hostilidade, mas o resultado dessas duas
atitudes diante da vítima acaba sendo o mesmo
Sob o ponto de vista das vítimas sim, porque a indiferença
também foi uma forma de hostilidade. Na perspectiva histórica
e diante do resultado do genocídio, tanto a hostilidade como a
indiferença favoreceram a perseguição e o extermínio
dos judeus.
Mas a propaganda do nazismo não era forte demais, gerando um
certo medo nas pessoas? Como então se pode saber que a suposta
indiferença não foi fruto disso?
Essa foi na verdade uma das conclusões ao terminar de escrever
meu livro: a indiferença e o medo são duas situações
muito difíceis de discernir. Mas certamente muita gente se protege
falando ter medo quando sentem indiferença. Deve-se analisar cada
caso. De qualquer forma, não há dúvidas de que um
clima geral de indiferença teve bastante peso na sorte dos judeus.
Parece difícil poder mensurar a culpa. Consiste em comparar
com aqueles que de alguma forma ajudaram os judeus e evitaram uma parte
da catástrofe?
Houve gente que arriscou a própria vida para ajudar os perseguidos,
fossem eles judeus ou simplesmente opositores ao regime nazista. E é
isso que devemos contrapor. O problema é que foram poucos.
Há como quantificar?
Pensava-se que tudo passaria rápido, omitiam-se os rumores que
falavam de perseguição e assassinato e, além disso,
muitas pessoas interiorizaram a propaganda nazi que insistia no perigo
dos judeus. Mas quantificar não é possível. O que
importa é que a indiferença ajuda aos perseguidores e essa
é uma boa razão para não ser indiferente quando se
trata de perseguição violenta.
Essa idéia, da passividade das pessoas como agravante da situação,
pode ser transportada para outros casos de perseguição política
ou crimes da humanidade?
Acredito que o estudo do Holocausto desde essa perspectiva mostra
que em toda situação de perseguição, os violentos
necessitam dos indiferentes. De preferência, muitos indiferentes.
Assim, ao final não terão oposição alguma.
Por isso, é um grupo útil politicamente. Posso sustentar,
portanto, que eles têm uma responsabilidade no desenvolvimento dos
acontecimentos, mesmo não desejada.
A senhora vive hoje no País Basco, onde se vive atualmente
situação de perseguição por parte o ETA. Como
fica a questão dos indiferentes?
Lá a situação é delicada. Aqueles que
não são nacionalistas são perseguidos pelo terrorismo
do ETA e seus cúmplices, que são muitos. Essa situação
real e dramática não teve até agora ajuda internacional
suficiente. Ainda assim há muita gente que prefere não se
envolver, porque assim acreditam que ficam à margem do problema
e não vão ser incomodados.
Mas há uma certa resistência, constantemente se vê
manifestações e protestos...
Ainda é pouco, há muita gente indiferente no País
Basco, sim. E essas pessoas que não se colocam ao lado dos perseguidos
favorecem a perseguição. Pelo menos não incomodam
e isso é um favor para os assassinos e seus cúmplices.
Nas questões sociais latentes de hoje, também tem culpa
quem se omite por estar bem?
São situações diferentes. Falo no livro é
da ausência de ajuda e colaboração entre amigos e
vizinhos, por exemplo, gente com laços afetivos e culturais até
então. Os problemas sociais, mesmo em países distante, é
outra situação, mas acredito que devamos tomar parte sim.
A passividade e indiferença hoje são grandes. O caminho
está na conscientização dessas pessoas?
Sim. Há situações de tanta injustiça em que
se deve fazer algo a qualquer preço, mesmo não estando diretamente
atingido. Hoje existe mais consciência do que nunca sobre os problemas
graves do ser humano, tanto gerais como particulares. Mas nunca estivemos
tão dominados pelos interesses econômicos coorporativos.
A globalização está resultando num estreitamento
das possibilidades de desenvolvimento econômico dos países
menos favorecidos e do progresso humano em geral.
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