As novas forças incontroláveis

"Não é possível reduzir tudo isso [o FSM] a uma só força, nem é possível que nenhuma orientação política tome conta dessa energia. Eu gostaria que todas essas vertentes se alimentassem dela, ao invés de tentar controlá-la".

Por André Deak e Giovanna Modé
EmCrise – 4/4/2003

Doutor em sociologia do direito pela Universidade Yale e professor titular da Universidade de Coimbra, o português Boaventura de Souza Santos é um dos principais intelectuais da área de ciência sociais. Depois de participar das três edições do Fórum Social de Porto Alegre, concedeu esta entrevista ao EmCrise, em que analisa as forças de resistência do evento, a vitória de Lula, a situação mundial e lança propostas, como a Universidade Popular dos Movimentos Sociais.

EmCrise: No ano passado, o senhor temia que uma ideologia de extrema direita ao estilo Le Pen tomasse conta do mundo. O sucesso do Fórum é uma amostra de que se conseguiu conter essa “lepenização”?

Boaventura: Sim, de fato conseguiu. Nestes últimos três anos, avançamos muito em termos de uma nova concepção do mundo e de uma idéia de que não só é possível, como também é necessário, urgente, transformar a situação em que o mundo se encontra. Lembremos do primeiro Fórum: para a mídia éramos um bando de desordeiros que se organizavam em Porto Alegre, tentando ser uma alternativa ao Fórum Econômico de Davos. Mas não éramos nem isso, não tínhamos nenhuma relevância. Já no segundo encontro tivemos a oportunidade de mostrar que éramos um movimento bastante relevante e tivemos a chance de iniciar um diálogo – aliás frustrado, e não muito bem conduzido – com Davos. Agora, no terceiro Fórum, um grande presidente de um grande país, que em alguma medida estava na origem deste Fórum, foi a Davos levar a mensagem de Porto Alegre.

E não só pudemos mandar um presidente e enviar uma mensagem de paz como também foi possível levar propostas concretas, a partir da energia e mobilização que se criou no FSM. Por isso penso que ganhamos muito nesses anos. Hoje, Davos é um “cadáver adiado”. Uma reunião que não tem muita importância – até porque floresceu quando o neoliberalismo florescia. Neste momento, com a expectativa de guerra, esse encontro não tem o brilho que tinha antes. Ao contrário, em Porto Alegre há muito mais gente do que no ano passado. Talvez não seja tão organizado, até porque neste nível já não é possível manter uma organização, a não ser que tivéssemos uma equipe organizada trabalhando durante todo um ano – e não há condições no movimento para isso.

Em 2003, uma das grandes reclamações foi justamente a desorganização. Testemunhos, oficinas e conferências mudavam de lugar sem aviso prévio. O caderno com os horários só ficou pronto no segundo dia – e ainda estava enormemente incompleto. Como se resolve esse problema?

Boaventura: Essa questão foi analisada e a conclusão é que, com esta dimensão, não há mais como organizar Fóruns no Sul. Mesmo com as condições únicas de Porto Alegre, com o espírito da cidade já acostumado à dinâmica do Fórum, temos que ter cidades mais organizadas. Mas não iremos enfocar tanto a idéia de grandes fóruns mundiais. Temos que fazer com que hajam muitos outros fóruns paralelos, onde possamos avançar propostas mais concretas, temáticas mais consistentes. Fóruns regionais e temáticos. Em meados de julho, na Colômbia, teremos um fórum sobre democracia, direitos humanos e violência. E outros vão se realizar em outros continentes, menores, talvez com 10 mil pessoas, com conferência de 45 minutos de duração – para que haja mais interação. Quando vão 15 mil pessoas no Gigantinho, como ocorreu neste ano, não há possibilidade de debate e complexidade. Ficamos reduzidos a fazer denúncias e propostas vagas. Esta linha de orientação é muito boa porque o fato de termos muita gente não significa um alto grau de internacionalização. Com uma fortíssima presença brasileira, esse fórum foi ainda uma grande reunião de brancos. Não tivemos África nem Ásia na proporção que deveríamos. Portanto, o fato de que o próximo Fórum será na Índia é também um apelo de que esse fórum se internacionalize mais.

Mas é importante que o Fórum se popularize, não?

Boaventura: Isso é muito importante. O Fórum ganha força e alguma consistência nas temáticas sobretudo porque no ano passado vimos que era preciso fazer uma conexão entre o neoliberalismo e a guerra, com a maneira como estava sendo explorado o trágico acidente com as Torres Gêmeas. O neoliberalismo estava muito conectado com a guerra; foi daí que surgiu a idéia de um fórum pela paz. A paz é universal, e não necessariamente uma coisa de esquerda ou de direita. Hoje, a esquerda, principalmente aquela que se reúne em Porto Alegre, que acredita que a luta e a mobilização deve ser não-violenta, ainda que pode eventualmente ser ilegal – com manifestações proibidas – naturalmente juntou-se a nós. E houve uma junção de forças, típica da social-democracia.

Na Europa existem várias formas de social-democracia, uma delas inclusive é a Terceira Via, que está completamente desacreditada, com toda a sua avidez belicista. Mas há uma outra social-democracia que procura reinventar, progressista, que vem procurar aqui suas energias, ver o que os povos pensam, que reivindicações têm. Portanto, eles vêm com um espírito de poder integrar-se de alguma maneira neste movimento por uma globalização solidária, que ultrapassa todos os modelos políticos com os quais a social-democracia estava habituada. Aliás, um exemplo disso é o discurso do Lula, que é simplesmente ético e não se encaixa nos jargões políticos aos quais nos acostumamos nos passado. Portanto, na medida em que caminhamos para um século novo, estas forças que alimentaram as políticas progressistas do século passado estão exaustas a procura de alternativas. Fico satisfeito com isso. Não é nenhum aproveitamento ilegítimo, pelo contrário, quanto mais, melhor.

O Fórum poderia ser visto como social-democrata?

Boaventura: Não, eles não têm força neste momento para poder controlar esse movimento que tem muita diversidade, muitas tradições, muitas temáticas consistentes, muitas tradições de luta, como por exemplo a ecológica, que vem de uma raiz diferente da luta indígena, diferente da luta feminista, dos juristas democráticos... Não é possível reduzir tudo isso a uma só força, nem é possível que nenhuma orientação política tome conta dessa energia. Eu gostaria que todas essas vertentes se alimentassem dessa energia, ao invés de tentar controlá-la.

Os senhor diz que “os excluídos precisam se transformar em protagonistas”. O Fórum, principalmente com essa descentralização que provavelmente ocorrerá nos próximos anos, concretiza esse caminho?

Boaventura: É um caminho. A questão da participação é muito complexa. Nem sempre conseguimos atingir aqueles que mais precisam. Há os excluídos e os excluídos dos excluídos. Quando foi inventada a sociedade democrática, os trabalhadores não participavam. Aos poucos eles foram participando, mas quando eles entraram, as mulheres ainda estavam de fora. Elas entraram, mas até 20, 30 anos, os indígenas estavam completamente fora do processo. A participação é cada vez maior, mas quanto mais nos dedicamos a ela, mais percebemos que existe quem esteja excluído do debate. Com o orçamento participativo aqui de Porto Alegre deu para perceber que não é tão fácil trazer a participação àqueles que não podem pagar o transporte, que não têm energia sequer para poderem participar da democracia. Ainda há muito a fazer. Os níveis de discussão são tão grandes que ainda levará muito tempo. E sobretudo se não olharmos as categorias sociais dos outros continentes: trabalho muito em Moçambique e não consigo imaginar como aqueles problemas encontrados lá possam vir a ser debatidos nesse Fórum. Seus problemas não podem ser divulgados, as organizações não têm dinheiro para viajar, não existe correio eletrônico.

O senhor lançou, no Fórum, a proposta da Universidade Popular dos Movimentos Sociais. Como ela seria?

Boaventura: Eu acho que o principal problema do conhecimento científico hoje é que ele se separou das práticas sociais e portanto temos uma realidade social que está subteorizada. E quanto mais se comercializa a universidade como estamos assistindo, mais essa separação fica nítida. Por outro lado, os movimentos sociais precisam de formulação teórica. Precisam parar para ver qual é o sentido das lutas porque ser ativista cansa muitas vezes. O que estamos fazendo? Para onde vamos? Todas essas reflexões pode ser facilitada por intelectuais. Mas hoje eles vivem em dois mundos bem distantes. Às vezes se reúnem como estamos aqui fazendo no Fórum, mas quando acaba cada um volta para o seu mundo. Os líderes, cientistas sociais e ativistas trabalhariam em conjunto, vendo quais os problemas e comparando as práticas.

Já há alguma idéia mais clara e objetiva?

Boaventura: Neste modelo de universidade, seriam salas de 30 pessoas. Os seminários teriam 15 dias para as questões internas e os outros 15 para se compararem com outros movimentos. Estou recebendo pedidos de informações sobre essa universidade. Precisamos densificar as propostas e as redes para que o discurso vá para a agenda política. Agora que o presidente Lula já disse que temos que aprofundar o diálogo. E penso que a maioria das pessoas presentes no Fórum estão dispostas a aprofundar esse diálogo. Sanar o isolamento temático. O movimento feminista caminha sem saber muito como está o movimento indígena. Enquanto os movimentos não dialogarem mais vai ser difícil avançar mais nas lutas.

Onde ela poderia ser implantada?

Boaventura: Depende das propostas que possam surgir. Eu pensei que Porto Alegre poderia ser uma boa. Principalmente porque agora vai ser aliviada de organizar o Fórum. Claro que eu preferia que fosse num país do Sul. Mas se aparecer uma proposta do Norte, tudo bem.

O senhor também comentou que o presidente Lula aponta para um governo inteligente e arriscado. Por quê?

Boaventura: Lula tem uma legitimidade democrática que poucos governantes têm hoje no mundo. Foi eleito por essa imensidão de gente, sem precedentes na história. E isso não causou grandes convulsões nos mercados econômicos. Temiam um quebra no mercado e não houve crise financeira alguma. Isso é uma vitória extraordinária. É na verdade um processo político que tem que ficar na retaguarda porque tem dois fantasmas ao lado, na Argentina e na Venezuela. O país mais importante economicamente do continente não pode correr o risco. Ele já dizia sempre “eu não posso errar”. Mas só Deus é que não pode errar. Até o Papa, que diz ser infalível, erra. Só os católicos mais fervorosos é que acreditam que o Papa não erra nunca.

Quais os possíveis caminhos para esse início de governo?

Boaventura: Está definindo uma meta política que tem registro ético que é muito fácil de poder ser passado internacionalmente, o Fome Zero. É um plano social muito mais amplo, que incluía saúde e educação e de repente ele formula o Fome Zero. É uma coisa que é totalmente distinta do programa do Salvador Allende no Chile. Ele tem capacidade de manobra, veja o discurso que fez em Davos. Apoiei a ida dele a Davos, desde que ele fizesse um discurso de credor e não de devedor. E ele fez: pediu uma oportunidade a partir de uma posição muito forte e conseguiu mudar a agenda da discussão, fazendo propostas concretas da alteração do sistema mundial. É preciso portanto que essa capacidade de manobra continue dentro do governo. Estamos numa fase ainda de definir a linha política. O significado político da vitória do Lula ainda está em aberto. Vai depender da maneira como ele vai conseguir transformar o poder social e político dessa sociedade e é um processo muito longo, difícil e arriscado. Mas penso que vai depender da sua moderação e de seu realismo - que não é populista, curiosamente. Ter integridade de dizer coisas simples e, além de conseguir fome zero, ter o governo mais honesto do Brasil. Sabemos que a situação na Venezuela e na Argentina não é apenas o neoliberalismo, é muita corrupção interna também. É o colapso total das lideranças políticas através do fracasso total dos partidos que durante muito tempo orientaram a política desses países. É essa mediação política que Lula tem que construir de forma ética e política.

Com o novo governo, os fóruns sociais, práticas como o Orçamento Participativo o Brasil estaria se tornando um laboratório de transformações sociais?

Boaventura: Sim, estamos num período de extrema criatividade social. O país e o continente viveram um grande período de renovação teórica e analítica. Teorias que a partir das experiências do Sul e de todo o Brasil em particular puderam criar um paradigma novo da realidade. A teoria democrática estava numa crise enorme na Europa e nos Estados Unidos, e foi a partir da experiência do orçamento participativo de Porto Alegre que surgiu uma energia extraordinária à teoria da democracia. E isso também ocorreu em outras cidades do Brasil e da América Latina e da Índia, onde as experiências de democracia participativa estão tendo lugar. Há uma capacidade de renovação. Agora que essa energia chega ao poder, penso que vai haver condições para uma renovação em todo o pensamento progressista.

Mas serão necessárias alianças com outros países, ou o Brasil já é grande o suficiente?

Boaventura: Na verdade, o Brasil é pequeno para produzir uma alteração no sistema mundial. Tem que ser conectado a outras forças. Por isso a idéia do Mercosul é importante. Sozinho, o Brasil não pode resistir à Alca - e com a Alca (tenho com certeza que o governo sabe disso) não há condições de um novo contrato social no Brasil. Por isso são necessárias as alianças com o Mercosul e outros países da América Latina. E para isso é necessário que a própria Europa deixe sua hipocrisia de querer se mostrar como uma alternativa aos Estados Unidos - mas que na prática não é.

O senhor fala muito do desafio que é a convivência intercultural. Isso na Europa é nítido com as migrações, na África com as diferentes etnias. E no Brasil, onde essa questão costuma ser mais camuflada?

Boaventura: Este país foi avassalado pela idéia da democracia racial que de fato nunca existiu. É uma forma de racismo diferente dos países de colonialismo anglo-saxônico. Mas o colonialismo ibérico criou formas de racismo que ficaram impregnadas às elites. Por outro lado, o fato de a independência não ter sido conseguida pelos índios e sim pelos descendentes dos colonos fez com que as relações coloniais sobrevivessem ao fim do colonialismo. Não é por acaso que houve genocídios ainda piores contra os índios depois da independência que antes da independência. Esse racismo está muito impregnado na cultura brasileira. Mas a sociedade não admite essa multiculturalidade e isso dificulta muito.

De que maneira?

Boaventura: Vejam o exemplo dos quilombolas, as terras de descendentes de escravos. Existem uma enorme dificuldade para registrar as terras dos quilombos nos cartórios, justamente porque o código de registro é totalmente adequado para a propriedade individual que vieram do modelo ocidental e que portanto não se pode aplicar aos descendentes de escravos que estão nas suas terras há 300 anos e que obviamente nem têm sobrenomes, carteira de identidade nem sabem onde nasceram. Isso é monoculturalismo jurídico numa sociedade que se diz multicultural. Essa questão já entrou na agenda com a força do movimento negro e com a força do movimento indígena. Mas há muito ainda a fazer nesse domínio. Pelo menos o problema está identificado. A crítica do movimento negro, por exemplo, de que no Fórum as discussões foram confinadas às oficinas, faz sentido. Essa temática não apareceu nos debates maiores. Há muito racismo difuso. Ninguém diz que é racista, mas não gostariam que sua filha se casasse com negro. E esse racismo difuso é tão ou mais difícil de ser combatido quanto o assumido. A maneira como concebemos o multiculturalismo é monocultural. Os negros têm suas tradições desde que não perturbem o nosso sistema educativo, o de saúde, o orçamento participativo. Temos a tradição individual, cada cidadão tem seu voto e eles, como os índios, têm identidades coletivas. Hoje a Europa começa a reconhecer que é multicultural. Os turcos na Alemanha já fizeram muitas conquistas, por exemplo. Mas é sempre aquele multiculturalismo reacionário ou liberal. A gente aceita que eles tenham suas práticas desde que não atrapalhem a cultura dominante. A cultua branca ocidental tem que reconhecer que tem muito a aprender também com as outras culturas, uma outra relação com a natureza, uma outra forma de dignidade humana.

O modelo econômico de hoje está insustentável?

Boaventura: Todas as nossas teorias, as nossas formas de organização, de mobilização social, de definição de alternativas políticas, os sindicatos, os partidos de esquerda tiveram uma base nacional, porque tudo é da época da consolidação do Estado Nacional. Com o neoliberalismo, todo o modelo baseado naquela época entrou em crise. A globalização não foi contra os governos. Foram os Estados Nacionais que se transnacionalizaram e foram eles os protagonistas de sua própria fraqueza interna. A escala nacional deixou de ser a escala única de muitas lutas. O Fórum é uma proposta no sentido de criar uma outra escala, a escala global. Mas essa também não basta. Eu penso que o que Lula foi dizer a Davos, por exemplo, que um novo contrato social no Brasil não tem nenhuma viabilidade se não for complementar com a mudança das instituições, com o FMI. O local acontece globalmente. No município de Alcântara, no Maranhão, por exemplo, a luta é local e global mesmo tempo. Ela acontece para populações que não têm condições sequer de ver essa articulação entre o local, o nacional e o global. Temos empresas americanas lançando satélites e temos uma legislação nacional e os povos que resistem a tudo isso. Portanto temos que ter uma forma de agilidade intelectual, política e social inter-escalar que seja capaz de passar do local, para o nacional para o global. Não dá mais para pensar as coisas separadamente.

Como será daqui para frente?

Boaventura: Sobre o futuro há uma incógnita. Em muitos continentes, neste momento, a virada à direita está contida, sobretudo na América Latina. A eleição de Lula, a vitória de Lúcio Gutiérrez, no Equador, parece ser possível uma agenda mais progressista. Não é uma agenda tão radical como tivemos nos anos 70 com Salvador Allende no Chile; é uma agenda moderada, mas que aponta no sentido certo. Isto é uma novidade. A Europa já teve governos mais progressistas, atualmente a direita governa a Europa – mas também penso que a extrema direita está completamente bloqueada, principalmente pela ligação que teve com a guerra e com o belicismo do presidente George Bush, que não conseguiu convencer a opinião pública internacional de que havia uma ameaça à segurança internacional no Iraque. Como tal, esse galicismo desacreditou todas as forças de direita que de alguma maneira tentaram capitalizar essa idéia de guerra do ocidente contra outras civilizações e contra os outros países. Neste momento conseguimos conter a lepenização, mas podemos ter algo pior, que é ter o mundo envolvido em guerras. E se essa guerra tiver lugar, sabemos que poderá transformar-se numa espiral de guerras.